16 de novembro de 2011
30 de janeiro de 2011
Vou sambar noutro lugar… de novo?
Um dos maiores sambistas de São Paulo, Geraldo Filme, escreveu um samba em 1969 intitulado Vou sambar noutro lugar, relatando a construção do viaduto Pacaembu e como a obra praticamente apagou um dos lugares mais importantes da história do samba de São Paulo, o Largo da Banana:
Fiquei sem o terreiro da escola / Já não posso mais sambar. / Sambista sem o Largo da Banana / A Barra Funda vai parar. / Surgiu um viaduto, é progresso / Eu não posso protestar / Adeus, berço do samba / Eu vou-me embora, vou sambar noutro lugar.
Traducional ponto de encontro dos negros, que trabalhavam no carregamento dos trens que chegavam à Barra Funda, o Largo da Banana se tornou um ponto de encontro de sambistas e praticantes da “tiririca”, ou pernada, a versão paulista da capoeira. Muitos dos principais nomes ligados à origem das mais tradicionais escolas de samba da cidade eram vistos frequentemente nas rodas do Largo.
Com a construção do viaduto, apagou-se não apenas um local da cidade, como tantos outros. O que se perdeu foi um lugar de referência fundamental da cultura popular da cidade. Se a noção de patrimônio cultural imaterial já existisse então, este seria um lugar perfeitamente enquadrável no que a UNESCO denomina paisagens culturais (ou lugares culturais), associados que são às “práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural".
Geraldo Filme identificou as forças que operavam a desmobilização do lugar dos sambistas: uma lógica que regia o crescimento (“progresso”), no qual a circulação automotiva era um imperativo inquestionável; e uma concepção de cidade em que a cultura popular (principalmente de negros) não tem lugar a não ser muito secundariamente, e apenas quando não interfere na “marcha do progresso” (que, sabemos bem, não é e nunca pretendeu ser inclusiva). Ainda mais num clima político extremamente autoritário, a elite dirigente não se dispôs a nenhuma transigência em relação ao patrimônio cultural da cidade, rasgando e destruindo seus lugares simbolicamente mais importantes. E Geraldo Filme sabia, como sambista acostumado a ser perseguido pela polícia apenas pelo simples fato de fazer samba, que “não podia protestar”.
Mas era um regime ditatorial, e hoje em dia a situação é diferente, certo? Não é bem assim. Mais uma vez, um lugar de samba tradicional e de referência da cidade pode dar lugar a um projeto de transporte. Estou me referindo ao metrô e o projeto da linha 6 (Lilás) e a ligação entre Brasilândia e São Joaquim, que terá estação na praça 14 Bis. Até agora, o projeto (que pode mudar, e espero que o seja) prevê a desapropriação justamente da quadra da escola de samba Vai Vai para concretização do projeto.
Não é demais perguntar: por que a Vai Vai? O que há de tão mais importante naquele pedaço que tenha que ser mantido, enquanto uma das mais antigas agremiações de samba da cidade pode perder sua quadra?
A desconfiança de que o caso do Largo da Banana esteja prestes a se repetir não é injustificada. Já faz algum tempo que as atividades da escola no Bexiga são motivo de tensões e conflitos com moradores (que, evidentemente, chegaram ali muito depois da escola e não têm nenhum vínculo com ela ou com a história do bairro). O samba virou, mais uma vez, o vilão da “paz” e da “segurança” no bairro.
Agora, tem-se um motivo quase incontestável para tirar a escola dali: em nome do “bem comum”, do interesse de “todos”, a escola deverá dar lugar ao metrô. E quem poderia se opor à expansão do metrô, ainda mais em tempos em que vemos, cada vez mais, a inviabilidade de se insistir no transporte automotivo na cidade. Da mesma forma como dificilmente alguém nos anos 1960 se oporia a que a cidade crescesse e expandisse sua rede viária.
Mas a questão não é ser “contra” ou “a favor” do metrô em si, mas à prática tão recorrente de apagamento sistemático da memória da cidade, especialmente dos lugares de significado relevante para nossas manifestações culturais populares. Ou, em linguagem ainda mais clara: os lugares de referência afetiva da população negra da cidade, ou das classes populares que fizeram da prática do samba um permanente exercício de resistência. Acredito, como arquiteto urbanista e como morador da cidade, que não há nenhuma – repito: NENHUMA – justificativa para que a estação e a quadra não convivam e sejam compatibilizadas.
Que ao menos uma vez a lógica funcionalista não seja tão insensível à cultura popular, ao lazer, a uma noção de cidade que não seja tão estritamente regida pela lógica econômica e "macro”, e leve em conta também a cidade dos usuários comuns e cotidianos dos lugares – aquilo que os mapas não conseguem mostrar. E se essa lógica tiver que prevalecer, que não seja se valendo de uma suposta impotência da população. A gente pode protestar.
Fiquei sem o terreiro da escola / Já não posso mais sambar. / Sambista sem o Largo da Banana / A Barra Funda vai parar. / Surgiu um viaduto, é progresso / Eu não posso protestar / Adeus, berço do samba / Eu vou-me embora, vou sambar noutro lugar.
Traducional ponto de encontro dos negros, que trabalhavam no carregamento dos trens que chegavam à Barra Funda, o Largo da Banana se tornou um ponto de encontro de sambistas e praticantes da “tiririca”, ou pernada, a versão paulista da capoeira. Muitos dos principais nomes ligados à origem das mais tradicionais escolas de samba da cidade eram vistos frequentemente nas rodas do Largo.
Com a construção do viaduto, apagou-se não apenas um local da cidade, como tantos outros. O que se perdeu foi um lugar de referência fundamental da cultura popular da cidade. Se a noção de patrimônio cultural imaterial já existisse então, este seria um lugar perfeitamente enquadrável no que a UNESCO denomina paisagens culturais (ou lugares culturais), associados que são às “práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural".
Geraldo Filme identificou as forças que operavam a desmobilização do lugar dos sambistas: uma lógica que regia o crescimento (“progresso”), no qual a circulação automotiva era um imperativo inquestionável; e uma concepção de cidade em que a cultura popular (principalmente de negros) não tem lugar a não ser muito secundariamente, e apenas quando não interfere na “marcha do progresso” (que, sabemos bem, não é e nunca pretendeu ser inclusiva). Ainda mais num clima político extremamente autoritário, a elite dirigente não se dispôs a nenhuma transigência em relação ao patrimônio cultural da cidade, rasgando e destruindo seus lugares simbolicamente mais importantes. E Geraldo Filme sabia, como sambista acostumado a ser perseguido pela polícia apenas pelo simples fato de fazer samba, que “não podia protestar”.
Mas era um regime ditatorial, e hoje em dia a situação é diferente, certo? Não é bem assim. Mais uma vez, um lugar de samba tradicional e de referência da cidade pode dar lugar a um projeto de transporte. Estou me referindo ao metrô e o projeto da linha 6 (Lilás) e a ligação entre Brasilândia e São Joaquim, que terá estação na praça 14 Bis. Até agora, o projeto (que pode mudar, e espero que o seja) prevê a desapropriação justamente da quadra da escola de samba Vai Vai para concretização do projeto.
Não é demais perguntar: por que a Vai Vai? O que há de tão mais importante naquele pedaço que tenha que ser mantido, enquanto uma das mais antigas agremiações de samba da cidade pode perder sua quadra?
A desconfiança de que o caso do Largo da Banana esteja prestes a se repetir não é injustificada. Já faz algum tempo que as atividades da escola no Bexiga são motivo de tensões e conflitos com moradores (que, evidentemente, chegaram ali muito depois da escola e não têm nenhum vínculo com ela ou com a história do bairro). O samba virou, mais uma vez, o vilão da “paz” e da “segurança” no bairro.
Agora, tem-se um motivo quase incontestável para tirar a escola dali: em nome do “bem comum”, do interesse de “todos”, a escola deverá dar lugar ao metrô. E quem poderia se opor à expansão do metrô, ainda mais em tempos em que vemos, cada vez mais, a inviabilidade de se insistir no transporte automotivo na cidade. Da mesma forma como dificilmente alguém nos anos 1960 se oporia a que a cidade crescesse e expandisse sua rede viária.
Mas a questão não é ser “contra” ou “a favor” do metrô em si, mas à prática tão recorrente de apagamento sistemático da memória da cidade, especialmente dos lugares de significado relevante para nossas manifestações culturais populares. Ou, em linguagem ainda mais clara: os lugares de referência afetiva da população negra da cidade, ou das classes populares que fizeram da prática do samba um permanente exercício de resistência. Acredito, como arquiteto urbanista e como morador da cidade, que não há nenhuma – repito: NENHUMA – justificativa para que a estação e a quadra não convivam e sejam compatibilizadas.
Que ao menos uma vez a lógica funcionalista não seja tão insensível à cultura popular, ao lazer, a uma noção de cidade que não seja tão estritamente regida pela lógica econômica e "macro”, e leve em conta também a cidade dos usuários comuns e cotidianos dos lugares – aquilo que os mapas não conseguem mostrar. E se essa lógica tiver que prevalecer, que não seja se valendo de uma suposta impotência da população. A gente pode protestar.
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