22 de outubro de 2010

Um debate familiar


Licença para uma postagem bem longa... Hoje vi um texto ao qual senti necessidade de responder. O autor é ninguém menos que meu pai. Como ele fez do texto uma declaração pública, também vou responder em público. Nenhuma das duas opiniões é diretamente voltada à do outro, mas é claro que há grandes discordâncias entre as duas opiniões – eu, a favor de Dilma, e ele de Serra. Também acho que nenhum deles ache que vai, com o texto, mudar a opinião de ninguém. Mas quero aproveitar a chance de comentar o texto do meu pai porque, sendo ele como uma pessoa que respeito e admiro tanto, não vou cair na tentação fácil de apenas desqualificar seus argumentos, e muito menos ele próprio.
Esta é uma questão que discuti com minha esposa há pouquíssimo tempo, e é absolutamente oportuno que este texto tenha proporcionado a chance de explicitar alguns pontos de vista divergentes entre nós. E a divergência não pode ser reduzida a uma questão de caráter, muito menos de moral. Quando nos deparamos com um texto de uma corrente política diversa da nossa, é tentador tentar desqualificar o autor como um “reacionário” ou um “radical”, um “desonesto” ou um “ingênuo”, e por aí em diante. Não quero cair nessa tentação. Talvez eu nunca seja capaz de convencer meu pai – nem parentes, nem alguns colegas – sobre minhas opiniões, mas da mesma forma que trato o texto e o autor com respeito, quero que quem ler o que vou escrever encare o meu texto com a mesma disposição de dialogar.
O fato de haver tão grande disparidade entre a minha opinião e a de meu pai é, sem dúvida, um grande mérito dele. Se foi capaz de permitir que eu desenvolvesse minhas próprias opiniões, formular minhas próprias ideias e me sentir capaz de defendê-las mesmo em oposição às dele mesmo, eu só posso lhe agradecer. Agradeço discordando, mas debatendo, argumentando e respeitando. Talvez um dia nossos políticos e os que militam por eles, de ambos os lados, talvez sejam capazes disso também.
Os textos em azul são do texto original do meu pai, e em vermelho os meus comentários. Tratei de comentar apenas os pontos de discordância, então quem quiser ler o original, está no blog dele:

Mas ela representa a continuidade de um governo que, embora tenha feito avanços nas políticas sociais, imbuiu-se de tal arrogância que nega todos os avanços anteriores e nos quais se baseou.
Arrogância... no mínimo, teríamos que admitir arrogância dos dois lados, então. Está fresca na minha lembrança o episódio em que FHC disse que o povo brasileiro era “caipira”, ou quando, indagado sobre suas políticas neoliberais, classificou seus críticos de “neobobos”. Recentemente, José Serra desqualificou uma indagação de Heródoto Barbeiro sobre os pedágios nas estradas paulistas, denominando-a “trololó petista”. Ou mesmo quando classificam as políticas sociais como “populistas”, palavra mágica para desqualificar qualquer movimento para fora do elitismo que quase sempre caracterizou a ação do Estado no Brasil. Essa postura de desqualificação do interlocutor é, infelizmente, uma postura muito comum entre tucanos: recusam-se ao debate, porque consideram os interlocutores ignorantes. Não vejo nisso um exemplo muito bom de postura democrática, ou “republicana”, como alguns gostam de chamar.
Quanto a negar os avanços, há dois pontos aqui: um diz respeito à política monetária, que em grande parte foi mesmo uma continuidade em muitos pontos daquilo que foi feito antes, e não há como negar. Isso era um compromisso assumido já em 2002, com a “Carta aos Brasileiros”, que teve o papel de acalmar os ânimos exaltados do mercado financeiro à época, que temia choques heterodoxos à moda do Collor. Por outro lado, ainda na área econômica, o governo representou uma profunda modificação em relação ao governo anterior, assumindo um papel muito mais diretivo e ativo na economia. Isso tem muito a ver com o que os economistas costumam associar a uma inspiração “keynesiana”, ou seja: o Estado investindo e gastando como uma forma de promover a circulação de dinheiro e dinamizar a economia. Isto difere enormemente do governo anterior – que basicamente se ocupou em cortar gastos e “enxugar” o Estado – e não há como dizer que houve mera continuidade. Na crise de 2008 essa diferença ficou ainda mais evidente, com o governo promovendo investimentos e gastos (essa palavra que é quase o diabo para os neoliberais) numa política que os economistas denominam de “política anticíclica” (simplesmente isso, ninguém inventou a roda nesse episódio, o que foi feito é perfeitamente amparado pelas mais elementares teorias econômicas), que apenas difere do receituário neoliberal.
Como os avanços na área social são reconhecidos, vale apenas um comentário: é comum dizer que o Bolsa Família é mera continuidade dos programas do governo anterior, e disso também discordo, em dois pontos: primeiro, o aumento de escala foi tão significativo que foi necessário desenvolver uma estrutura de distribuição de recursos que os programas anteriores simplesmente não seriam capazes de prover; segundo, há uma diferença de concepção: enquanto se desagregava a verba em diversas “bolsas” (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, etc), o governo direcionava e impunha aos beneficiários a maneira com que deveriam aplicar o dinheiro recebido. Com o Bolsa Família, os beneficiários ganharam autonomia (no sentido literal da palavra: autodeterminação) para decidir o que fazer com o dinheiro. Que tenham ocorrido casos de aplicação equivocada (sob nosso ponto de vista), é o preço a pagar pela autonomia. O governo, ainda assim, optou por não tutelar o “povo” e assumir que ele é consciente o suficiente para saber o que fazer com o dinheiro de que dispõe. Essa opção, aliás, é tão diametralmente oposta a qualquer definição de “populismo”, que só pode usá-la ainda quem não entendeu a política, não entende o que é populismo ou simplesmente não quer se dar ao trabalho de examinar a realidade. Ou as três coisas, que é o que eu acredito que os tucanos façam.

A negação sistemática, feita por Lula, de tudo o que veio antes o elevou a índices de popularidade inéditos. Mas, fruto de uma mente autoritária que reverencia todos os ditadores que conheceu, ela se baseia também na repetitiva afirmação de inverdades.
Vou comentar esse “autoritarismo” do Lula adiante. Quanto a reverenciar “todos os ditadores que conheceu”, acho que a afirmação precisa ser um pouco matizada. Talvez se queira referir a ditadores de orientação socialista. Sem entrar no mérito da questão dos regimes socialistas, que exigiriam um texto à parte, lembro de certa ocasião o Lula ter debatido com um líder político de um país do leste europeu recém-democratizado: esse líder acusava os regimes socialistas de autoritários e celebrava a abertura, ao que Lula chamou a atenção que, no caso da América Latina, alguns dos mais bárbaros regimes autoritários instaurados contavam com amplo e ativo apoio dos países “democráticos” (leia-se capitalistas). Talvez se lembre também de alguma declaração favorável do Lula ao regime militar brasileiro, mas também neste caso há um contexto a considerar: o comentário dizia respeito não ao autoritarismo, mas à atuação do Estado como protagonista econômico e sua capacidade de planejamento. Esses argumentos poderiam ser estendidos longamente, mas esse comentário serve para ao menos matizar o comentário, que eu também considero inverídico. De resto, a “repetitiva afirmação de inverdades” também é recurso da oposição, quando insiste em classificar o governo de “populista” quando os fatos dizem o contrário, quando insistiu à exaustão a tal tese do “terceiro mandato” por mais que o Lula a desmentisse, etc.

Lula dá-se ainda o direito de zombar da Justiça, fazendo escárnio publicamente até de decisões do Supremo Tribunal, e nada acontece. Só a sua verdade vale.
Minha opinião é que o que há aqui é um embate essencialmente político. Acho que faz parte do direito de expressão dizer que se discorda, e em quê. Se houve “escárnio” ao STF, não vejo exemplos mais edificantes na oposição. Se o STF merece respeito, também o merece um Presidente da República, seja quem for. Neste sentido, os oposicionistas (e algumas figuras truculentas como Arthur Virgílio, ACM Neto, ou outros, já disseram as maiores barbaridades sobre o Lula, sem nenhum constrangimento à “liturgia do cargo”). Assim, acho que é mais salutar do que prejudicial que as posições divergentes sejam explicitadas. Que eu me lembre, mesmo que tenha feito “escárnio” de decisões do Supremo, não houve nenhum movimento de “retaliação”, por exemplo. Acho que isso seria muito mais preocupante do que meras declarações públicas.

Hábil orador, distorce o sentido das palavras para lhes atribuir um significado conveniente, que venha em socorro de seus companheiros pegos em atividades ilícitas. Com ele, caixa-dois deixa de ser crime, vira tradição e nada mais acontece. Corruptos e corruptores tornam-se apenas aloprados e nada mais acontece.
Nisso não vejo diferença com nenhum outro governante anterior. Inclusive em relação ao “nada acontece”... lembremos que a expressão “dar em pizza” é muito anterior ao governo Lula. Muito se tem lembrado, ultimamente, a figura do Geraldo Brindeiro, o “Engavetador Geral da República”. Muita coisa tem sido denunciada, muita coisa é investigada. Quanto a punições, essas dependem muito mais da Justiça, cujas imperfeições e vícios não têm relação com o governo, são bem anteriores a este, e também beneficiaram muitos dos atuais opositores.

Mas ele próprio corrompeu o sindicalismo ao torná-lo servil ao seu projeto de poder.
Nem todo o sindicalismo se submeteu, mas há com certeza aqueles sindicatos e centrais que o apoiam, como já o apoiavam quando não era governante. Mas existe um grande debate no meio sindical a respeito de uma “cooptação” dos movimentos sociais (os sindicatos como apenas um caso) pelo governo, e está longe de ser um consenso entre eles que esta situação tenha sido benéfica para eles.

Há cerca de um ano ou mais, Lula “premiou” os grandes grupos sindicalistas com 100 milhões de reais a fundo perdido, sem a contrapartida da prestação de contas. Agradecidos, hoje os grandes líderes sindicais sobem ao palanque com Lula e Dilma.
Talvez isso tenha acontecido mesmo (não sou ingênuo de achar que essas coisas não ocorram, apenas duvido que sejam exclusividade deste governo). Ainda assim, reduzir a isto o apoio de líderes sindicais ao Lula e à Dilma é injusto e equivocado. Porque existe uma afinidade histórica entre o PT e os sindicatos, mesmo antes de haver qualquer “prêmio” de governos. O PT surgiu dos movimentos sindicais, das lutas operárias, e nunca foi segredo que a CUT é apoiadora do PT, desde muito antes de o partido alcançar qualquer cargo diretivo. E o PT no governo, ao contrário, tem sido alvo de muitas críticas de movimentos que o apoiaram – e se ainda o apoiam, isto se deve não apenas ao dinheiro, mas a uma oposição ao projeto adversário. Reduzir toda a questão apenas ao dinheiro é uma atitude despolitizadora.

Minha memória se recusa a esquecer a pergunta que Lech Walesa, o líder do movimento polonês Solidariedade, fez um dia a Lula: “Mas vocês, no Brasil, misturam sindicato com partido político?” Misturam, sim, e com o dinheiro das mensalidades e anuidades dos sindicalizados, não importando a que partido estes pertençam. Isso é um erro essencial, gravíssimo, mas o País já se acostumou a essa distorção ética. Minha contribuição mensal e anual, por exemplo, pagou parte de recente manifestação do Sindicato dos Jornalistas em prol de Dilma.
Nisto talvez resida uma crítica ao sindicalismo de forma geral. Mas antes do PT, havia o mesmo problema com a relação entre os sindicatos e o PCB, o “Partidão”. Há razões históricas para essa confusão de sindicato com partido, e talvez a explicação esteja na amarra getulista dos sindicatos ao Estado. E há mesmo um problema de partidarização dos sindicatos, como também do movimento estudantil ou outros. Isto, porém, não deve ser tomado como pretexto para invalidar os sindicatos enquanto tais. Até porque, em grande parte, esses sindicatos acabaram se tornando espaços restritos de interesses partidários também porque os que se opunham a isso, em lugar de lutar para mudar a situação, resolveram se retirar deles e da participação direta. Legalmente, os sindicatos são representantes da classe profissional a que se referem. Se isto não é o que acontece na prática, a melhor maneira de mudar a situação é participando de suas decisões, não se excluindo delas.

E contra o quê se manifestava o sindicato? Contra o golpismo midiático! É muita ironia.
Posso contar alguns casos de jornalistas que, trabalhando em veículos da chamada “grande imprensa”, foram desautorizados e “censurados” internamente por escreverem matérias que iam contra o interesse dos veículos. Em casos como a questão das cotas, ou dos livros didáticos (para não falar das eleições), alguns jornais e revistas simplesmente abriram mão de um debate às claras, amplo e com divergências de opiniões. Em lugar disso, passaram a fazer verdadeira campanha em defesa de uma posição que, em momento algum, abriu qualquer espaço para o contraditório. Mesmo que o termo “golpista” possa parecer exagerado, há uma reivindicação legítima em relação a uma parcialidade desmedida – e, pior, disfarçada de “isenção” – por parte da mídia, ou dos principais veículos. E essa não é apenas uma avaliação de setores apoiadores do governo. Até mesmo alguns ombudsmen dos jornais observaram isso (antes, é claro, de o cargo ter sido extinto por vários desses veículos)...

O fato é que a censura corre solta no governo Lula, com tendência a piorar! O Grupo Estado, que nos tempos da ditadura publicava versos de Camões ou receitas culinárias para assinalar os trechos censurados, hoje sofre a censura imposta pelo clã Sarney, cujos desmandos impingem ao seu Estado o pior IDH do País. Mas Sarney apoia Lula e coincidentemente a censura não acaba. O próprio Lula tentou extraditar o jornalista Larry Rohter porque não gostou de ser mostrado como alcoólatra por este. A censura aos meios de comunicação é uma ideia fixa do atual governo.
Não consigo entender como se pode falar de censura quando há revistas como Veja, Época, ou jornais como a Folha, o Estadão, o Globo, em que tantos articulistas, editorialistas, e até matérias regulares (que alguns poderiam supor que não são os espaços opinativos desses veículos) podem livremente criticar, desqualificar e até ridicularizar abertamente o governo, o partido governista, e até (ou principalmente) o presidente. E até onde eu sei o governo nunca designou uma pessoa ou um órgão para avaliar previamente o que é publicado para autorizar ou não. Para mim, é isso o que caracteriza censura. Do outro lado, tenho visto e ouvido frequentemente de pessoas que trabalham nesses jornais e revistas, que qualquer opinião minimamente divergente daquela que o editor ou o dono do veículo defende é previamente descartada, ou imediatamente punida. Maria Rita Kehl que o diga. O caso da “censura” ao Estadão é uma situação desagradável, mas que formalmente ocorreu dentro das regras de um Estado de direito. A “censura” é o resultado de uma decisão judicial, que pode ser revertida, e não da intervenção direta na redação, como foi no regime militar. Da parte do Estadão, não reconhecer essa diferença fundamental é nada menos que desonesto. O caso do jornalista americano é, de fato, vergonhoso, mas não consigo ver neste caso um exemplo de uma tendência geral, ou de uma “idéia fixa”. Essa “ideia fixa” é geralmente relacionada ao projeto do Conselho Nacional de Jornalismo, e a crítica de que se trata de uma tentativa de “controle” partiu tanto da direita quanto da esquerda. Por isso, merece ser discutida com cuidado. Eu chamo a atenção para o fato de que se trata de um projeto de lei, de uma proposta de regulamentação da constituição... não se pretendeu criar um instrumento como esse por meio de decreto ou de “ato institucional”, por exemplo. Então, nos debates, o direito ao contraditório dos que discordam está assegurada – tanto é assim que o projeto não foi aprovado! Condena-se o governo por propor a discussão, e por ter uma posição a respeito, mas não há como ver autoritarismo em nenhum dos procedimentos que, até agora, orientaram a discussão deste projeto. Se é bom ou ruim, é uma discussão que, infelizmente, aqui não tenho espaço para debater. Mas o que se tem feito é radicalizar o debate para “liberdade absoluta” versus “controle total”, enquanto o que eu acho é que pode e deve haver um meio termo.
Ah, sim, um comentário sobre o clã Sarney. Não morro de orgulho de ver que ele apoia o governo Lula, mas também não me iludo em achar que exista uma ampla convergência programática e ideológica entre ambos – o apoio é circunstancial. Tem muito a ver com o arranjo partidário que governa atualmente, no qual o PMDB é também governo. Mas é um apoio que vai só “até a página dez”... imaginem o que Sarney faria, dono que é de tantos veículos de comunicação no Maranhão, se a discussão do CNJ ou a regulamentação da Constituição a respeito dos meios de comunicação (e a limitação à oligopolização da mídia, por exemplo) avançassem. Alguém duvida da ferocidade com que ele assumiria a oposição ao PT? Na verdade, o lamentável é que “coronéis” como Sarney e tantos outros, tenham permanecido no poder por tantos anos, atravessando governos e governos e se mantido quase intocáveis. Pois Sarney também não apoiou o governo FHC? Isso diz muito mais sobre o fracasso das “forças progressivas” no país em constituir uma sociedade mais democrática, e muito também sobre o êxito dessas “oligarquias” em se perpetuarem no poder em suas regiões, a despeito de qualquer mudança governamental. Como o “Leopardo” de Lampedusa, a nossa elite sabe se dividir e estar sempre dos “dois lados” para que sempre continue ganhando, e sendo capaz de sempre de seguir a regra do “às vezes é preciso mudar para que tudo continue igual”. Ter permitido que essa situação tenha se mantido é um erro ou uma limitação do governo petista, por certo, mas também o foi do governo FHC, e não tenho motivos para acreditar que também não vá ser no caso de um governo Serra – já que tantos desses oligarcas integram o DEM que o apoia.

O aparelhamento do Estado tornou-se uma realidade, apoderando-se dos cargos públicos e se achando no direito de distribuí-los aos companheiros, não importando se têm competência ou não.
Outra questão que pode ser analisada de forma mais cuidadosa. Primeiro, é muito comum que um partido, ao assumir um governo, queira colocar em cargos de confiança pessoas alinhadas com suas próprias propostas e concepções. Até aqui, acho que ninguém há de ver problemas, e assim é feito em qualquer governo. Segundo, talvez exista uma tentativa de equivale essa política a um projeto “leninista” ou “stalinista” de tomada do Estado. O alerta é válido e há que prestar atenção a isso, mas não há elementos para algo além disso. Terceiro, quando se coloca o “não importando se têm competência ou não”, também se abstém de avaliar de fato a competência de quem foi lá “colocado”. Pelo simples fato de estar no governo em “cargo de confiança” já desqualifica quem lá está. No entanto, nas diversas áreas que acompanho profissionalmente, o que vejo é estão lá algumas das pessoas mais credenciadas para as políticas em cada setor – exemplos não faltam: no Ministério das Cidades, do Meio Ambiente... Ao mesmo tempo, muito se tem investido na expansão do funcionalismo público por meio de... concursos públicos! O que pode ser mais alinhado com a idéia de “competência” do que alguém ser aprovado para órgãos públicos após passar em concurso? Mais uma vez, falar de “aparelhamento” é uma generalização descuidada.

Competência, afinal, é um conceito demonizado, porque implica direitos e deveres. Uma só coisa interessa: direitos. Deveres dão trabalho!
Acho que muito diferente de demonizado, o conceito é problematizado. “Competência”, em primeiro lugar, não é um conceito neutro, como parece. Existem pessoas igualmente qualificadas que defendem concepções de políticas públicas muito distintas. Dá para dizer que alguma delas é mais competente? Por outro lado, competência não implica exatamente “direitos e deveres”, mas responsabilidade. Quando se diz que algo “compete” a alguém, significa que esta pessoa se responsabiliza por aquilo, e não vejo neste governo uma atitude generalizada de fugir à responsabilidade, como é sugerido. Mas há uma ideia de fundo nesta crítica, que associa a atividade política ao descompromisso com o “trabalho”. Isto, infelizmente, é uma imagem muito difundida: políticos, em geral, “não trabalham”. Sindicalistas, lideranças sociais e afins “não trabalham”. Mas duvido que qualquer um desses não saiba o que são “direitos” e “deveres” em sua atividade. Pode haver, mas não acho que este seja algo que possa ser discutido em termos genéricos, e quando se atribui uma qualidade dessas a um governo todo, ou a um partido ou a uma corrente política, essa generalização ganha ares de preconceito...

Surpreende ver como até Chico Buarque caiu na demagogia fácil ao afirmar que “este governo não fala fino diante de Washington, nem fala grosso diante da Bolívia e do Paraguai”. Isso é discurso de porta de fábrica.
É muito mais do que isso. Demagogia é um termo pejorativo, depreciativo, para uma política externa marcante. Em momentos cruciais, quando tantos exigiam do governo que “falasse grosso” com a Bolívia (quando esta nacionalizou a produção de gás no país, o que era uma antiga demanda dos movimentos sociais que, com Evo Morales, chegaram ao governo) ou quando o Paraguai resolveu reivindicar maiores direitos em relação à usina de Itaipu. Oposicionistas exaltados só faltavam exigir do governo que declarasse guerra a esses países, e o governo teve a sensatez de propor negociação. Com relação a Washington, o posicionamento é mais sutil, pois não houve afrontas diretas (como Cuba e Venezuela, sempre associados a Lula, adotaram), mas também não há subserviência. Há algo reconhecido muito frequentemente como “demagogia”, que é o fato de Lula insistir em se pronunciar em português. Acho isso muito positivo, porque este é o idioma do país que ele representa. Aos olhos de alguns, isso está relacionado à sua “ignorância” (afinal, desde Rui Barbosa, acostumamo-nos a ter orgulho de nossos representantes serem doutos nos idiomas da “civilização” e dos países “avançados”). Aos olhos do resto do mundo, e quem está lá fora comprova isso, o que aparece é apenas uma disposição de um presidente de se exprimir por sua língua nativa e se valer dos sempre presentes intérpretes e tradutores para ser entendido pelo interlocutor. Com isso, Lula torna fato um diálogo entre iguais, entre nações que, formalmente, são equivalentes no direito internacional. Que há uma assimetria de poder, ninguém nega, mas essa assimetria simplesmente não é naturalizada.

A arrogância de Lula vem de um sentimento de inferioridade que ele nunca superou e que inconscientemente projeta nos outros, chamados vagamente de “eles”. Só não consegue esconder o incômodo que lhe causa ouvir falar em FHC. Chega a saltar da cadeira, nessa hora. Valha-nos Freud!
Atitudes são quase sempre carregadas de múltiplos significados, e o “sentimento de inferioridade” é talvez um deles, não o único nem necessariamente o principal. O perigo de uma “psicologização” tal  é que, de um lado, se impute ao Lula uma tendência inerente, imutável (“é um traço de caráter”), e de outro lado, descontextualiza e retira da história pessoal de um indivíduo, o Lula que não é apenas o ocupante de um cargo mas alguém que tem uma trajetória. Se há mesmo um sentimento de inferioridade, ela não deve ser usada para desautorizar nem para desculpar uma pessoa e seus atos. Não acho que se deva usar esse sentimento para caracterizá-lo como um “coitado” nem como um “mau-caráter”. Por outro lado, como comentei antes, existe a arrogância que vem de um sentimento de inferioridade e uma arrogância que vem de uma prepotência esnobe. Entre uma e outra, fico com a primeira. O sentimento de inferioridade, por outro lado, tem um componente de “classe” (por odiosa que a palavra pareça para alguns). A história de Lula ainda é a do migrante pobre, nordestino. Que isto tenha sido usado como arma de marketing, é uma coisa, mas que há um substrato real nessa imagem, também há dúvida. Lula tem sido sempre acusado de se valer dessa “imagem” para se justificar em tudo e “não trabalhar”, mas essa acusação sempre desconsidera o trabalho que foi organizar metalúrgicos, liderar uma greve contra o regime militar, fundar um partido de “esquerda” e fazê-lo o maior partido de “esquerda” do mundo. Essas conquistas são frequentemente menosprezadas pelo simples fato de não corresponderem a um ideário que se acredita ser mais adequado ou mais edificante como exemplo de realização individual. Não se encaixa no “self-made man”. Mas quanto a humanidade deve a pessoas que, além ou até em lugar de projetos individuais de vida, trabalhou em nome de coletividades! Que em determinado momento o projeto coletivo tenha dado lugar a um projeto pessoal, é questão a se discutir (eu não concordo), mas que há uma história maior do que apenas isso, certamente há. Sobre FHC: é nítido também o desconforto que ele demonstra ao ser comparado com Lula. Supondo-se que não há, neste caso, um “sentimento de inferioridade”, será que se pode falar em “inveja”? Afinal, e já que é para falar de psicologia, vaidoso como ele é, não deve ser nada fácil ser colocado em pé de igualdade (ou até em desvantagem) na comparação com Lula.

Das bobagens que li ultimamente, a maior delas dizia “Se Dilma ganhar, haverá golpe”. Talvez fosse um dilmista aterrorizado.
Conheço o autor da frase. Embora ache que não dá para afirmar algo assim com tanta convicção, também não acho que seja meramente uma bobagem. O que o “dilmista aterrorizado” (na verdade, está muito longe disso) quer alertar é que há pessoas por trás da oposição a Dilma, a Lula, ao PT, que não medem as conseqüências na defesa de seus interesses. Que não sejam todos, ainda assim a situação de polarização que esta eleição demonstrou é preocupante. Principalmente pelo grau de agressividade que os dois lados têm utilizado para desqualificar um ao outro. Embora eu ache que a agressão que Lula e Dilma têm sofrido é imensamente maior. “Cachaceiro”, “analfabeto”, e agora “assassina”, “terrorista”. Quem lê as páginas de debates pela internet deve se assustar com declarações antipetistas de um nível de intolerância e preconceito que beiram, ou até mergulham fundo, num fascismo de botar medo. E essa atitude também me aterroriza.

Se Serra ou Dilma ganhar, não importa, o Brasil continuará crescendo. No segundo caso, porém, pelo que mostram os fatos atuais, progressivamente irão sendo calados os meios de comunicação. Haverá então uma única voz e verdade: a versão oficial.
Mais uma vez, não vejo “fatos atuais” que comprovem que qualquer meio de comunicação esteja ou vá ser calado. E, de qualquer forma, uma coisa que está clara é que cada vez mais o debate se desloca desses meios de comunicação unidirecionais (jornais, revistas, TV) para estes, como a internet e as redes sociais, que são essencialmente colaborativas, de ida e volta. A produção de conteúdos está cada vez mais descentralizada, e isso aponta para uma sociedade cada vez mais – e não menos – democrática, onde a “voz oficial” é, cada vez mais apenas mais uma voz.

Felizmente, se Serra ou Dilma ganhar, não importa, sempre haverá gente lutando por um país melhor e mais justo, sempre haverá gente trabalhando – e muito! – pelo bem da coletividade. Isso independe da vontade pessoal de qualquer um dos dois.
Concordo, e acrescento: não creio que nenhum dos dois candidatos, ao menos pessoalmente, deseje algo diferente disso.

É bom lembrar que o ganhador levará apenas pouco mais da metade dos votos.
O que, mais uma vez, garante que não será possível haver uma única voz e verdade.

16 de outubro de 2010

Carta a Soninha

Durante esta semana vários de meus conhecidos, amigos e parentes repassaram e recomendaram a leitura de um depoimento que você escreveu explicando a decisão de apoiar o candidato à presidência José Serra. Bom, na verdade, é muito mais do que apoiar um candidato, já que você se tornou nada menos do que coordenadora em sua campanha. Procurei ler seu texto, em busca de alguma explicação para o que, para mim, ainda não fazia sentido. Mas me decepcionei profundamente com seu depoimento.
Em primeiro lugar, não traz novidade nenhuma: quem lê seu texto apenas tem novos “argumentos” (e eu escrevo entre aspas porque não vi nele uma argumentação de fato) para reiterar uma opinião genérica e superficial do que é a política, em geral, e o PT, em particular. O seu depoimento nada faz além de confirmar aquela imagem que se tem do “jogo político” como algo essencialmente ruim e antiético. Em nada remete a alguém que diz ter como sonho “resgatar a crença das pessoas na política”. Porque tudo o que você elogia em Serra é aquilo em que ele parece se afastar da política. Mas isso faz parte da imagem que ele tenta vender, e você ajuda a disseminar: a de que Serra está “além” ou “acima” dos interesses partidários, das disputas políticas. Será mesmo? Quando professores entraram em greve, qual foi a disposição dele para dialogar de forma “republicana”? Não foi isso que eu vi: em todas as entrevistas dele só o que eu via era a tentativa de desqualificar qualquer movimento como “político”. Eu sei, e você também sabe muito bem, que uma declaração como essa também é profundamente política. Como é profundamente política a indisposição para negociar ou dialogar. Bom, eu falo isso como quem assistiu a situação “de fora”, mas não acho que por isso minha opinião - que você deverá dizer que é “apenas uma versão” - deva ser desconsiderada. Afinal, a maior parte da população vê essas coisas como eu - “de fora”. Resumindo, então, o primeiro ponto: você não ajuda a enriquecer o debate criando essa contraposição entre um PT “político” e um Serra “desinteressado”.
Mas a “autoridade” do seu testemunho estaria no fato justamente de ter visto o que ninguém viu, de ter estado “lá dentro”. E é aí, onde eu tinha o maior interesse em conhecer “fatos” e “informações”, o que você apresenta são afirmações vagas, genéricas. Fala de “projetos” da oposição que o Serra apoiou: que projetos foram? Ou de projetos da base aliada que ele vetou? De novo, quais foram? Fala dos “petistas”, e não dá sequer a chance de nenhum deles se defender. O que você faz é uma acusação grave, mas faltam - justamente - informações e dados que ajudem o leitor a entender a circunstância toda.
O caráter “republicano” é exemplificado por você por ter vetado projetos que ele considerava contrários aos interesses públicos, sancionado outros positivos, mesmos que originais da oposição. Mas tudo isso segundo uma concepção que ele tem do que é o bem comum, concorda? Permita-me um exemplo: ele foi um dos grandes promotores da política de arrasa-quarteirão que foi o famigerado projeto Nova Luz. Deste projeto eu poderia falar longamente, como urbanista, mas vou resumir no seguinte: a maioria absoluta dos urbanistas na época foi contrária ao projeto como se apresentou, e não houve grande disposição para diálogo - alguns dos críticos do projeto, como o padre Júlio Lancellotti, foram sistematicamente difamados e desqualificados. O que é o projeto hoje? Um fracasso. Será que não teria sido muito mais produtivo ter ouvido outras pessoas? Além de você, quem mais ele ouviu? Sobre política urbana, por exemplo, quem mais além de Andrea Matarazzo, que se mostrou uma pessoa absolutamente indisposta a negociar e dialogar “republicanamente”, como você tanto preza?
Você enumera várias “realizações” de Serra, mas isto qualquer programa político é capaz de fazer. PT ou PSDB, PMDB ou DEM, todo partido que já foi governo terá sua lista de obras, de projetos iniciados, concluídos... Porque as realizações do Serra são necessariamente melhores? Você coloca como grande feito ter “mantido” os telecentros e os CEUs, mas para mim o mais importante é quem os concebeu. E me desculpe discordar, mas não acho que a manutenção dos CEUs tenha sido mérito apenas de seu convencimento. Houve ampla mobilização e reivindicação para que esses equipamentos não fossem desmantelados e sua concepção fosse preservada.
Enfim, há muito o que poderíamos discutir - políticas públicas, projetos para a cidade, concepção do papel do Estado. Eu acho importantes todas essas discussões, mas não é o que seu texto propõe. Ficamos apenas com uma impressão sua sobre o “caráter” individual de Serra (olhe só: o PSDB ou o DEM não são mencionados uma única vez por você!), em contraposição ao “jogo sujo” de um PT genérico. Bastante injusto, não? Seu texto acaba servindo muito bem a quem já se coloca como “anti-PT”, como tantos (e você, como ex-petista, sabe bem de que tipo de agressividade uma postura como essa pode ser). Mas só isso: pelo seu depoimento, não encontro nada que me ajude a julgar o projeto peessedebista. E o que eu testemunhei não me agradou, honestamente falando. Tudo bem, é apenas minha “opinião”, mas o que li do seu texto também não passa de sua opinião.
Vou terminar dizendo que os motivos que a levaram a deixar o PT são talvez os mesmos que sempre me deixaram em dúvida quanto a participar ativamente da vida partidária, ou seja: a “liberdade” de votar e se expressar exclusivamente conforme minhas convicções pessoais. Acredito que eu, fosse no PT ou em qualquer outro partido, teria problemas em seguir certas orientações, diversas de minhas próprias concepções. Então optei por me manter de fora, e preservar a liberdade de criticar o que achasse necessário. Se você encontrou um partido cujas posições coincidem inteiramente com as suas, ótimo para você. Mas não é honesto de sua parte dizer que somente o PT ou os “petistas” (que nem sei quais exatamente são) fazem esse tipo de “jogo”.
Quando você centra toda a argumentação numa questão de “caráter”, esvazia toda discussão - necessária - sobre que sociedade queremos. E, ao contrário do que tenta nos convencer, não existe unanimidade sobre isso, então não dá para debater na base do “bem comum” versus “interesses particulares”, ou da “postura republicana” versus “guerra suja”. É lamentável que você não tenha feito nada para ir além dessa dicotomia. Quando acusa os petistas de tentarem criar uma imagem de Serra como o Satanás, não está fazendo outra coisa além de também pintar o PT com essas mesmas tintas. Por que, então, uma coisa é tão condenável e a outra tão natural? Como pode querer que eu acredite que seu testemunho é imparcial quando você, do mesmo jeito que os petistas que critica, não se mostra capaz de reconhecer o que seus adversários propuseram ou fizeram de bom? E se nem você é capaz disso, o que me faria acreditar que seu candidato, seu partido, sua coligação, seriam capazes? Se você tem respostas para isso, porque insistiu numa argumentação reducionista, caricata, sentimental? Vindo de outra pessoa, eu teria imaginado que era apenas um texto raso, superficial e inocente de alguém que não consegue ir além da pobreza do debate político que temos testemunhado nestas eleições. Sendo você, jornalista e comunicadora, política e “uma das principais lideranças políticas” de seu partido (como ele mesmo se refere a você na página do partido) não consigo imaginar que não tenha escrito um texto com palavras muito cuidadosamente escolhidas e um tom meticulosamente estudado, para que os “antipetistas” pelo Brasil afora tenham supostamente “argumentos” para desqualificar qualquer projeto ou proposta do atual governo. Com uma suposta autoridade, conferida por quem esteve “do lado de lá” e, vendo os “horrores” daquele monstro que é o PT segundo seus olhos, decidiu se unir ao lado oposto.
Seu depoimento não é isento, não é objetivo, sequer equilibrado. Por isso, não é inocente. E você sabe disso.

15 de setembro de 2010

"Pagodeiro" no Senado

Nas últimas semanas, uma amiga colocou no Facebook uma questão sobre os candidatos em quem votaríamos para o legislativo. Outra escreveu em seu blog um breve artigo explicitando sua opção para a presidência. E aqui estou eu, pensando no assunto (política/eleições) de novo.
Acontece que hoje, durante o dia, me ocorreu um pensamento que talvez tenha decidido minha escolha para o segundo senador em quem votar. Lembrando: nesta eleição, votaremos para dois candidatos ao Senado. Embora o título deste post já explicite em quem eu pensei hoje, quero pedir ao leitor que segure o escárnio ou a indignação por mais alguns instantes, para que eu possa apresentar alguns argumentos, e espero que ao menos eles estimulem alguma reflexão. Não estou aqui fazendo campanha, não tenho sequer a intenção de convencer ninguém. Mas fomentar um debate que precisa sair do esquema "torcida de futebol" e ganhar alguma seriedade.
Então vamos lá: resolvi votar em Netinho. Pensando que isso é inteiramente coerente com o que venho pesquisando e defendendo intelectualmente e politicamente. Um primeiro argumento, raso, seria dizer que estudo os sambistas e por isso o apoio ao Netinho, ex-integrante de um grupo de samba e ainda tachado de "pagodeiro" (com toda a carga pejorativa que o termo carrega). Se assim fosse, eu estaria admitindo que tenho com os sambistas uma relação de mera curiosidade, que os encaro de uma maneira "folclórica", como algo inteiramente alheio à minha realidade e, mais do que isso, meramente "exótica", divertida, excêntrica.
Vai daí um primeiro problema: um dos argumentos de minha tese é exatamente que a manifestação por meio do samba pode ser, com bastante proveito, entendida também em termos políticos. Desde que, para isso, ampliemos o significado que damos a "político", além dos jogos partidários e das disputas eleitorais.
Netinho era absolutamente político quando cantava "essa gente já sofre demais/ são tratados como animais / e só querem um pouco de paz / e precisam ouvir Racionais". Também era político, à sua maneira, quando fazia seu programa televisivo (não preciso concordar com o que o programa realizava para considerar "político" em certo sentido). Mas é absolutamente significativo que ele tenha passado à ação política formal, convencional até.
Para mim, sua candidatura parece algo novo, porque Netinho não se vale simplesmente de sua popularidade como cantor, mas de sua sempre enfatizada origem e história de vida. E seu discurso não é o de um "humilde" que venceu na vida e ponto. Este seria o argumento perfeito para ele se lançar por qualquer outro partido oligárquico-liberal, já que estaria apenas repetindo o mantra do "self made man" burguês. Sua vivência não lhe permite isso, e uma rápida olhada em seu site confirma isso. Ele tem consciência de sua condição de oriundo da periferia metropolitana, de uma realidade cruel e implacável com a maioria de seus residentes. Sabe que é uma exceção e não se conforma com isso. E, como sua campanha já destaca, é um candidato negro ao senado por São Paulo. Fato inédito, e isso não é pouca coisa.
Sua candidatura tem, guardadas as proporções, o significado da de Lula, no sentido de que é uma figura oriunda de uma classe que raramente tem voz ativa nessa nossa vida política brasileira. Uma prova disso? A permanente desqualificação que lhe é dirigida. Os jornais que se referem a ele (um vereador de São Paulo) como "pagodeiro", entre outras tentativas de lhe retratar como uma figura risível, ridícula e desprezível. Mas ele está lá. Como a própria periferia, ele se faz presente e se impõe mesmo contra a imagem que tenta associar sua figura sorridente à de um bobo. Mas não acho que ele seja bobo: vindo de onde vem, é antes de tudo um sobrevivente.
Nossa elite, e na cola desta a nossa classe média, tem demonstrado uma incrível incapacidade de reconhecer um papel ativo e consciente aos oriundos das "classes populares". Continua achando que os pobres são inconseqüentes, apáticos, passivos. Acostumada a ver os "de baixo" como figuras infantilizadas (ou até imbecilizadas), incapazes de decidir por si próprias e de se representar. É contra essas imagens todas, ainda tão presentes e arraigadas no senso comum, que resolvi dar uma chance a essa parcela da população de alcançar algo que, possivelmente há alguns anos, seria impensável: um senador negro originário das camadas mais pobres da população urbana brasileira. Quantas vezes tivemos senadores com essas características?
Será muito bom ter um senador que declara que "Eu conheço a dificuldade das pessoas e não é através de estatística ou notícia de jornal. Eu vivi isso". Será bom que o Senado ouça mensagens desse tipo, e saber que não mais poderá dizer o que bem entender de uma população que pouco conhece.
E ao declarar a intenção de votar nele, não estou supondo que ele acertará (segundo meu ponto de vista) em tudo, que não poderá errar. Depositarei nele um voto, sim, e não as esperanças de redenção. Errando ou acertando, é fundamental que a população que ele pretende representar se sinta capaz de alcançar as instâncias políticas em que sua voz necessariamente se fará ouvir. Mesmo com eventuais discordâncias em relação a propostas ou ações que ele desenvolva, quero apoiar uma candidatura de alguém que, vindo "de baixo" (e eu tenho estudado com afinco as ações de pessoas como ele), faça do "povão" protagonista de fato da política nacional. Errando ou acertando: do mesmo jeito que eu sempre acreditei que a democracia só se aprende praticando, acho também que só exercendo a política o povo poderá adquirir a tão falada "consciência política". Se é que já não a tem.

23 de julho de 2010

Mais pressões e despejos na periferia de São Paulo — Brasil de Fato

O samba de Adoniran Barbosa (Despejo na Favela), que inspirou este blog, é de 1969. A realidade dura que ele canta, porém, continua se repetindo nas periferias das nossas cidades...
Esta notícia acaba de chegar, e eu já divido com todos.
Triste, mas infelizmente não é surpresa. Principalmente nesses tempos neocons de Kassab & Cia...

Mais pressões e despejos na periferia de São Paulo — Brasil de Fato

20 de julho de 2010

O Samba agoniza ou nunca agonizou?

Muito bom esse texto do Nei Lopes! Pra pensar sobre várias coisas: patrimônio cultural, samba & tradição, cientificismo...
Recomendo!

COMPUTADOR DA USP, BÊBADO-EQUILIBRISTA, DELETA O SAMBA.
(Nei Lopes – O Estado de S.Paulo – sábado, 5 de junho de 2010)

Volta e meia aparece alguém decretando a morte do samba, ou achando que ele é alguma coisa difusa e antiga que existiu musicalmente em tempos idos. Isso já motivou letras e letras, tentando mostrar o contrário. Em uma delas, por exemplo, Nelson Sargento diz que o nosso gênero-mãe “agoniza, mas não morre”, numa afirmação da qual pedimos licença para discordar, pois o samba, desde o Pelo Telefone, nunca esteve agonizante. Muito pelo contrário!
Semana passada, mesmo, estivemos lá no Espaço Anhanguera, na Barra Funda, no terceiro aniversário da roda de samba dos Inimigos do Batente, turma que lê Bourdieu e sabe que nas trocas simbólicas do samba tem muito mais negociação do que conflito. Pois a festa “botou pelo ladrão”, com pelo menos mil pessoas cantando e dançando até quase de manhã ao som do batuque ancestral.
Fora dali, outras provas eloquentes da vitalidade e da diversidade do nosso ritmo poderiam ser claramente vistas ou ouvidas, por exemplo: na contemporaneidade do Clube do Balanço, com seu samba-rock; no Quinteto em Branco e Preto, que trafega entre a modernidade elegante e a tradição engajada, nos palcos e no disco, já há quase 15 anos; no trabalho espiritualizado e reverente da cantora Fabiana Cozza – e isso, falando só da Pauliceia.
Pois é. Desde 1917. E, assim, historiando, lembremos de Tempos Idos, obra na qual o grande Cartola se orgulhava de o samba ter saído do morro e chegado aos salões, indo exibir-se “pra Duquesa de Kent no Itamarati”, como de fato aconteceu nos anos 50. Essa trajetória, anotada pelo genial compositor, simbolizaria a ascensão social do gênero e da cultura que o gerou. Coroada em 2001 com a outorga da Ordem do Mérito Cultural a quatro das escolas de samba cariocas pelo Ministério da Cultura, em solenidade palaciana de Brasília, essa ascensão culminaria logo depois com o tombamento do samba como patrimônio imaterial da humanidade.
Medalhas e brasões todos sabemos quanto custam. Da mesma forma que sabemos que o tombamento de um bem cultural tanto pode protegê-lo contra dilapidações quanto propiciar o engessamento de possibilidades desse bem, seja ele tangível ou imaterial. Além disso, a cultura brasileira, quando fala de samba, está quase sempre se referindo às escolas, numa generalização ingênua.
Sabemos que é difícil, para quem não é do ramo, perceber a diferença que hoje existe entre samba e escola de samba, e o grande fosso que se cavou entre essas duas instituições. As escolas nasceram bem depois do samba, com a intenção de desestigmatizá-lo e legitimar sua aceitação pela sociedade dominante. Mas elas hoje, embora deslumbrantes, cada vez mais se distanciam do universo que as criou.
Se o leitor ainda não compreendeu a diferença, compare, por exemplo, certos aguerridos conjuntos de “velhas guardas” com as agremiações que lhes emprestam os nomes. E, de quebra, evoque um grande sambista, principalmente falecido, e veja se seu nome é sequer lembrado nas “quadras” de hoje, cheias de gente “famosa”.
E é em meio a essa reflexão que nos chega a notícia de que um programa de computador desenvolvido por pesquisadores da USP e da Universidade de São Carlos, visando a acabar com as “atuais, e subjetivas, definições de gêneros musicais”, está promovendo uma reclassificação. Por meio de espécies de partituras digitais, tomando como base a percussão e abolindo as categorias tradicionais, estabeleceram-se padrões que serviram para reclassificar 400 músicas, geralmente agrupadas nas categorias rock, reggae, bossa nova e blues. E, aí, a máquina, reconheceu como “100% bossa nova” o grande samba O Bêbado e o Equilibrista, de João Bosco & Aldir Blanc, conforme matéria publicada pelo jornal O Globo.
Confundir samba-enredo com bossa nova não é culpa da máquina, claro, e sim de quem, ao alimentá-la, não teve a sensibilidade de entender que o gênero é o samba, e que a bossa nova é apenas um belo estilo interpretativo nascido dele ou, quando muito, um subgênero.
Nesta, Candeia, que sabe das coisas, já deve ter pensado lá do outro lado: “Meu Deus! O samba apanhou da polícia, foi garfado pelas múltis, e agora é deletado pelo computador…”

3 de julho de 2010

Falando da seleção

Acabou a Copa do Mundo 2010 para nós, brasileiros. Decepção, desilusão, ou uma "trajédia anunciada"? Como um dos milhões de técnicos de que o Brasil dispõe, vou deixar aqui alguns comentários despretensiosos. Claro que é assunto pra causar polêmica. Espero que sim!

Foi só um jogo
Começando pelos pontos positivos. O Brasil perdeu um só jogo, justo no momento em que não podia. Paciência. Não acho que tudo estava errado desde o princípio só por causa desta partida. Tudo bem, a campanha da seleção não foi nada brilhante: vitória apertada sobre a Coreia do Norte, empate bisonho com Portugal (jogo de comadre, ok, mas muito feio, e muito diferente do que esperamos da seleção). Mas o Brasil não deixou de estar, em toda a competição, no mesmo nível de todas as favoritas.

Um time
Podemos discordar do time montado por Dunga, da convocação e escalação, do estilo de jogo. Mas Dunga cumpriu a risca o que prometeu: criou um time que é um conjunto, e não uma soma de jogadores. Um senso de coletividade, solidariedade, os egos controlados. Isso é uma lição que não se deve perder.

Defesa sem defensivismo
Talvez alguns achem que sim, mas não vejo esta seleção como um time retranqueiro, ou coisa parecida. Mas foi uma das primeiras vezes em que a defesa brasileira não dava calafrios cada vez que era atacada. E eu lembro que até em times tidos como "defensivistas", como a seleção campeã de 1994 ou o time do Lazzaroni, era assim. É muito bom torcer para um time que perde pouco.
De fato, talvez uma das razões imediatas da desclassificação foi que contra a Holanda falhou justamente isso que tínhamos de mais confiável. A começar pelo goleiro...

Descontrole
Agora, os pontos negativos. A seleção confundiu raça com descontrole, levou "lutar" ao pé da letra. Dois jogadores expulsos mais os que acabaram cumprindo suspensão, e isso em só cinco jogos! E, pelo amor de Deus, esse Felipe Melo precisa de tratamento psiquiátrico!!

Poucas opções
Uma seleção brasileira sem opções no banco? Nunca vi isso! Acabou que o time ficou dependendo demais da inspiração de uns poucos. Vejam a falta que fez o Elano! E ele que não é nenhum Zico, mas joga direito, tem visão de jogo e toca bem. Kaká recém-contundido, fez o que pode, mas estava muito longe do seu potencial. Robinho até que tentou, mas também não fez uma copa à sua altura. E acabou. Sem esses três, como foi contra Portugal, o que o time era capaz de criar? Absolutamente nada.

Faltou criatividade
Faz muito tempo que eu percebo que o Brasil não consegue jogar bem contra times fechados, na "retranca". Claro que é mais difícil, mas essa é a regra entre adversários do Brasil, e temos que saber o que fazer. A impressão é que o time não sabe abrir times fechados, forçar o erro adversário. E, o que impressiona, parece que escolhe sempre o caminho mais difícil, onde tem mais adversário. Contra times pequenos não é problema, porque não oferecem perigo, mas fica um jogo irritante. E contra grandes times bem armados (como foi a Holanda, ou mesmo Portugal), o Brasil simplesmente não criava nada. Temos que esperar que os adversários sempre nos ataquem? Ilusão...

Acertem o passe!
Pra mim não tem coisa mais irritante do que errar passe, e não tem melhor indício do que esse de que um time está jogando mal. E o Brasil tem essa tradição: na jogada individual, na tabelinha curta, ótimo. Mas aí o jogador faz um drible maravilhoso num lance, e em seguida erra um passe simples. Isso é de matar.

Bom, isso é o que estou lembrando de imediato. Quem mais quer opinar?

24 de junho de 2010

Eu voltei!

Depois de uns três anos com esse blog meio perdido (e eu sem conseguir recuperar o acesso), eis que tudo se resolveu e o blog "Mas e essa gente aí, hein?" está de volta!
Nesse meio tempo, acabei criando outro blog, então este será reorientado para coisas diversas daquelas que dizem respeito a cidade, urbanismo e outros - que continuarão no Cidade Artefato.
Então, espero contar com a preciosa companhia de quem quiser me acompanhar, sei lá por onde! ;)
Tamo na área, de novo!!!