24 de fevereiro de 2014

Do rim aos direitos, um ensaio sobre a dor

Faz uma semana que passei por uma cirurgia para retirada de cálculo renal - a famigerada e infame "pedra no rim". A operação foi relativamente simples, mas a convalescença deu mais trabalho do que eu esperava: dois dias internado, mais o resto da semana com um "Duplo J", um cateter entre o rim e a bexiga que incomodava muito, doía, sangrava... Tudo isso coroando um processo que se arrastava havia dois meses, desde a primeira crise, no começo de dezembro de 2013.
Numa das conversas com enfermeiros no hospital, eu me peguei descrevendo as dores que sentia com aquela conhecida expressão: "não desejo isso nem ao meu pior inimigo". Eu não considero que tenha de fato qualquer inimigo, mas nos tempos conturbados em que vivemos, de tensões e conflitos à flor da pele (e da terra), de uma escalada da violência e da intolerância, não pude deixar de pensar no significado daquela expressão à luz da experiência de dor física (real, quase palpável) que estava vivendo naquele momento.
Não pude deixar de pensar também naqueles que adoram apontar contradições nos outros indivíduos (meu deus, o que poderia ser mais humano do que ser contraditório em certos momentos?) e ameaçam com a hipótese de que quando algo "acontecer com você" esse "discurso" dos direitos humanos cairá por terra e se revelará a verdadeira hipocrisia de quem a professa. Pois, meus caros, sinto desapontar a esses: a vivência da dor me fez ainda mais fervoroso na defesa desses direitos.
Mas... o que uma coisa tem a ver com a outra?
Bem, em primeiro lugar, quero contar o que aprendi com a dor. Primeiro: a dor não é racional nem sentimental - a não ser quando usamos, metaforicamente, a noção de dor para se referir a outras formas de sofrimento. A dor é física, e mobiliza o corpo, contra qualquer ideia preconcebida, se preciso. Talvez isso se alinhasse com a ideia de que um sofrimento real poria por terra a defesa de direitos a quem inflige sofrimento. Mas avancemos.
Segunda lição: tudo o que uma pessoa que sofre de dor deseja é que a ela cesse. Nada mais. Se alguém lhe disser que com morfina a dor passa, você permite que lhe apliquem morfina. Quanto maior a dor, mais irracional é o desejo de vê-la passar, e nessa hora parece que aceitamos qualquer promessa ou proposta. Consigo perfeitamente usar essa ideia para pensar em pessoas em situação de abstinência de qualquer vício que seja. Mas também em situações de desespero, aí o recurso ao misticismo, à religião (qualquer uma), a fórmulas mágicas de vida e livros de autoajuda.
Terceira: a dor é intransferível, não se compartilha. Aí é que a coisa complica. Se eu estou com dor, quero que a minha dor passe. Alguém dizer que a do outro é maior que a minha não alivia a dor em si. Dizer que "alguém vai pagar" pela dor que você está sofrendo não faz com que a dor seja mais suportável. Aí é que o desejo de vingança, para mim, se esvazia por completo: infligir dor ao outro não interfere em nada na minha própria dor. Matar o outro não traz o ente querido que foi morto.
Quarta e última: dor não é medida de mérito. Não há dor justa ou injusta, moral ou imoral. Quando atinge alguém, não existe nisso nenhum "castigo", e não faz sentido achar que há uma escala de dor proporcional a uma escala de pecado, com correlação entre a gravidade de um e a intensidade do outro. Exatamente pelos motivos das outras lições, eu não vejo nenhuma eficácia em considerar a dor como uma medida educativa ou punitiva. Ela não vai ensinar nada. Vai apenas despertar um instinto ou uma reação orgânica de defesa, de fuga, o que seja. Qualquer medida punitiva precisa ser facilmente identificada com o delito a que se refere, e a dor não pode fornecer esta identificação. 
Daí chegamos à sentença original: "não desejo isso nem ao meu pior inimigo". Que, em outras palavras, poderia ser: "não quero que ninguém sofra o que eu sofri". Por que eu quereria? Se quando estou sentindo dor, quero apenas que ela passe, se não adianta "compartilhar" a dor com outro que a minha não passará por causa disso, se ela será inútil em ensinar qualquer lição ao "inimigo", de que serve desejar a dor do outro? Esse desejo só é concebível por quem já não sente a dor, e só é verdadeiramente desejável por aqueles que nem tem mais a lembrança real de uma dor verdadeira.
Pensamentos como "foi pouco, tinha que ter dado um tiro na cabeça" são na verdade frases de efeito sem lastro. Sua enunciação revela apenas uma desconexão completa entre o que é dito e o significado do que é dito, uma alienação entre o conceito e a experiência da dor. Não consigo imaginar que pessoas normais e saudáveis se mantenham impassíveis ou até contentes diante de uma pessoa se contorcendo de dor, por exemplo. Digo "normais e saudáveis" porque para mim, evidentemente, um torturador ou um assassino não se enquandram nessa descrição, e sofrem daquela desconexão/alienação que citei.
O problema é que, talvez, a alienação em nossa sociedade tenha chegado também a essa esfera da vida pessoal: deseja-se a morte de alguém como se fosse apenas apertar um botão em um game e ver um corpo se estilhaçar. Ver uma pessoa urrando de dor é cena corriqueira em filmes do tipo "mocinho e bandido" dos mais diversos matizes: o "bandido" tortura um inocente, mas depois será devidamente punido, com altas doses de dor e sofrimento. Se nos acostumamos a ver isso em filmes e games, será que não é possível supor certo torpor nos nossos sentimentos de empatia, de identificação com a dor do outro? Se as "razões" justificam e perdoam, é possível ouvir o grito de dor, o corpo se contorcendo, e não sentir que interromper aquilo é urgente - é humano.
Quem ganha com essa indiferença para com o outro? Eu não. E sempre que ouvir ou ler qualquer relato de tortura, agressão, mutilação, seja da parte que for, com razão e com justiça ou não, eu imediatamente me lembrarei da minha pedra, me solidarizarei com o que sofre e desejarei que ele não seja novamente submetido à dor, de nenhuma espécie. Temos meios mais educativos, mais eficientes... e mais humanos de ensinar a quem erra qual a melhor maneira de não errar de novo.