6 de abril de 2014

Classe média, os impostos e o medo do poço sem fundo

Tem sido quase lugar comum criticar as atitudes e valores da classe média brasileira - individualismo, conservadorismo, etc. Sempre me lembro, nessas horas, de um ensinamento da minha orientadora do doutorado, quando ainda era um estudante em iniciação científica: sociologicamente não há "classe média" - o mais correto seria usar a expressão no plural: "classes médias". Por que isso faz diferença? Porque talvez o maior erro dessas críticas seja o de colocar inúmeros grupos em uma categoria única, desconsiderando suas diferenças, seus conflitos, até mesmo suas contradições e incoerências. Há enormes diferenças entre o executivo e o professor da rede pública, entre o jornalista e o médico, entre o arquiteto e o mestre de obras. E diferenças também no interior desses grupos (e, com essas diferenças, não quero dizer que "cada um é cada um", mas sim que coletivamente cada um deles é também heterogêneo, com diferentes orientações políticas, culturais, etc, antes ainda das diferenças da história pessoal de cada integrante).

Uma classe?

Essa denominação no singular estaria muito mais ligada a um método de estratificação socioeconômica, baseada no critério de renda (ganho monetário), mas será possível estabelecer tão diretamente assim uma correlação entre o que se ganha e aquilo em que se acredita, ou em como se age? Pensei nisso mais uma vez recentemente, ao me deparar com minha declaração anual de renda. Eu, que até ano passado fazia jus a restituições, subitamente me vi alçado à condição de pagador (ou seja, ganhei mais do que o imposto retido na fonte supunha), e de uma quantia que me assustou: o equivalente a um mês de salários. Primeiramente, discuto o meu caso: um mês de salário é até pouco diante dos valores que se divulgam normalmente, como os 27,5% sobre a renda mensal no extrato mais elevado (ou seja, não um mas 3 meses de salário) ou da carga tributária no país, que chega perto de 40% (quatro meses). Um mês só? Estou no lucro!
Mas aí a segunda pergunta: quem pode dizer que um mês de ganhos não faz falta? Se eu tivesse que pagar de uma vez só, simplesmente não saberia de onde tirar esse dinheiro. Bem, saberia, mas a sensação é de que não se está disposto a pagar. Antes de começar a gritaria contra o pagamento, entretanto, eu fiz alguns exercícios de relativização que valem a pena. Convido o leitor a pensar em sua própria situação a partir desse meu exemplo.

Quem paga a conta?

Primeira coisa: o valor do imposto é injusto? Eu, e acredito que boa parte dessas classes médias, tem como história de família a "ascensão pelo trabalho" (não apenas meu, mas de meus pais, meus avós, e por aí vai), e a lembrança de todas as dificuldades para alcançar esse novo patamar ainda estão frescas na lembrança (sempre há alguém na família que faz questão de lembrar isso). Por essa perspectiva, pagar imposto parece uma "punição" pelo próprio sucesso. Isso só faz sentido se aceitamos a premissa de que o "sucesso" se deve unicamente ao esforço individual, o que eu não concordo (não vou entrar nessa discussão agora, mas estou a meio termo entre essa ideia individualista e a de que o esforço individual não tem influência nenhuma). Se, por outro lado, reconhecemos que nosso sucesso é resultado de uma conjunção de fatores que incluem uma boa parcela de outros esforços individuais, há nessa tributação alguma forma de recompensa ou retribuição. Por outro lado, há também que considerar o princípio moral do Homem Aranha, segundo o qual "grandes poderes trazem grandes responsabilidades". E eu custei para acreditar ao me dar conta de que eu, que a duras penas pago todas as contas e me mantenho sem grandes luxos ou supérfluos (e muitas vezes acabo o mês no vermelho), faço parte da porção de maior renda da população brasileira (possivelmente não o topo da pirâmide, mas o extrato "B"). 
O problema é que o fosso abaixo de mim parece sem fundo. Vi essa mesma discussão quando foi aprovada a "PEC das Domésticas": no fim, pessoas se queixando de ter que arcar com os custos de uma família extra (a da empregada). Acho que há quem consiga sim, mas não são todos, e nem é a maior parte da "classe média". Se considerarmos o nível de vida da população mais pobre, é possível que até possamos, mas não deveria ser esse o critério. Como eu disse, o poço parece não ter fundo, e há famílias que se sustentam com o salário mínimo (nem sei como). Deveria ser assim? Acho que não. A mesma ideia parece se aplicar ao imposto de renda: é como ter que tirar do próprio bolso e pagar um salário a alguém.

Pagar pra quê?

Segunda pergunta: imposto para que(m)? Ao Estado, é a resposta óbvia. E aí duas queixas comuns: de que o Estado não retorna proporcionalmente à população aquilo que arrecada; e de que a arrecadação "sustenta a corrupção (ou os corruptos)". Aí vale ponderar um pouco as coisas. Primeiro, o retorno dos impostos pode ser relativizado, e meu amigo Carlos Kikuti fez isso magistralmente em seu texto "Brincando com números" (veja aqui) - a conclusão é que parece haver uma relação entre o aumento de carga tributária e o desenvolvimento de um país: "desenvolvimento custa dinheiro em impostos" e "a única coisa que se pode dizer do Brasil é que ele poderia cobrar ainda mais impostos" (volto já à questão: cobrar de quem?). Por outro lado, as notícias que mostram o Brasil reduzindo a desigualdade há mais de uma década graças, em parte, às políticas de distribuição de renda (Bolsa Família, entre outros) mostra que há sim um retorno do Estado para a população, mas numa dimensão mais ampla: não um retorno individual a quem pagou, mas um retorno à população como um todo. Quem pagou mais está, indiretamente, financiando a redução da desigualdade no país. Não era pra se orgulhar disso? Aí a questão da corrupção. Bom, não quero perder tempo com julgamentos morais, mas posso dizer que, se por um lado é verdade que a corrupção (o desvio de verbas públicas, e a - adivinhem? - sonegação fiscal) prejudicam muito a capacidade do Estado de implantar políticas públicas de desenvolvimento e redução de desigualdades. Mas também é verdade que a escolha do Estado em privilegiar o atendimento a interesses privados específicos (como os bancos, conforme mostra esse artigo aqui) atrapalha muito mais. E, bem, precisamos reconhecer que o Estado está melhorando seu retorno à população a despeito da corrupção. Corrupção esta que não existe no Brasil há apenas dez anos (como alguns parecem acreditar) e, mesmo que tenha piorado (o que eu acho muito discutível), foi acompanhada de importantes melhoras.
Na realidade, creio que a queixa contra o pagamento de impostos deva ser entendida em duas dimensões: a da sensação de insegurança que acomete essas classes médias, e uma sensação de que, uma vez que a desigualdade é tão acentuada no país, uma renda razoável parece autorizar os institutos de pesquisa de mercado, as políticas públicas e outros igualem perfis de renda muito discrepantes: de fato, acho que há entre eu e um banqueiro uma diferença tão grande quanto a que me separa do miserável lá na base da pirâmide. E aí temos duas coisas a consertar, talvez.

Insegurança como regra de vida

A sensação de insegurança a que me refiro não se refere apenas à violência, ainda que a inclua. Muito do medo da violência que a "classe média" tem se refere aos crimes contra o patrimônio - aquele mesmo "conquistado com esforço e com méritos próprios, etc". Não por acaso, a cobrança de impostos é frequentemente descrita como um "roubo", e o mesmo valendo para a corrupção. Mas há outro aspecto da insegurança que considero mais decisivo: o medo de que, por circunstâncias diversas, o trabalhador médio se veja privado de sua renda (a de seu trabalho) e seja lançado ao poço - aquele que não tem fundo. Não é um medo infundado nem injustificado. E quem escala o poço sabe que não quer voltar lá pra baixo. Pois se nossa sociedade não consegue garantir que, no caso de perda do trabalho/emprego, a pessoa não perca suas garantias básicas de sobrevivência, então temos um problema real. A solução pra isso requer que o poço tenha fundo, e que o fundo seja trazido para mais perto da superfície. Isso inclui combater a corrupção em suas várias formas (e não só aquela que os jornais mostram, mas principalmente a que eles omitem), a qualificação dos serviços públicos (o aumento do uso desses serviços pelas classes médias pode contribuir muito para isso, ao quebrar o estigma de que serviço público é "para pobre"), uma política de garantia de renda mais consistente (seguro-desemprego e afins) - e, neste caso, para isto é preciso quebrar o mito e o preconceito de que essas garantias estimulariam a "vagabundagem".

Valores

A redução da desigualdade, enfim, é a única maneira de assegurar que o esforço de combater a miséria e proporcionar essa segurança descrita acima seja uma responsabilidade compartilhada pela maior parte da população. Como está hoje, uma pequena fração apenas tem condições de assumir essa responsabilidade (e, sim, eu e você fazemos parte dela). A "pirâmide" da renda precisa adquirir a forma de um balão: muito maior no centro do que na base: isso proporcionaria um ganho de escala que possibilitaria atenuar o peso dos tributos sobre a parcela média. E, claro, se queremos fazer justiça tributária, há que estabelecer o princípio de que quem ganha mais paga mais. Nosso sistema atual tem, entre outras perversidades, a característica de funcionar ao contrário disso.
Para que a nossa sociedade consiga superar suas dificuldades, é preciso que cada um de nós se veja não apenas como um indivíduo isolado (e em disputa com todos os demais) e assumir um projeto coletivo - que, no fim das contas, beneficiará a todos. Há nisso elementos de generosidade e de solidariedade, que normalmente são tidos apenas como qualidades pessoais - mas, diferentemente da ambição, ela se expressa para além da pessoa e alcança o outro. Nossas classes médias precisam urgentemente cultivar em seus membros esses valores: generosidade para com os desiguais, e solidariedade para com os iguais. No primeiro caso, reconhecer que o esforço empreendido resultará numa melhoria para todos; e no segundo, uma disposição de articular com seus semelhantes um conjunto de pautas comuns a serem demandadas do Estado e das elites: basicamente, a melhoria e consolidação dos serviços públicos que garantam a segurança de vida para todos - e também para essas classes médias.
Esses valores de responsabilidade, generosidade e solidariedade me tranquilizam um pouco em relação ao pagamento de impostos: se eu posso eu pago sim, e vou ficar feliz de ver que, também nesse aspecto, eu estou "fazendo a minha parte". E se eu consigo perceber que isso é um investimento de longo prazo que se reverte também a meu favor, fazendo com que eu tenha menos medos - de um momento de instabilidade profissional, de um criminoso ou mesmo de andar na rua com algum bem adquirido - posso me convencer de que o preço está bem pago.