16 de outubro de 2010

Carta a Soninha

Durante esta semana vários de meus conhecidos, amigos e parentes repassaram e recomendaram a leitura de um depoimento que você escreveu explicando a decisão de apoiar o candidato à presidência José Serra. Bom, na verdade, é muito mais do que apoiar um candidato, já que você se tornou nada menos do que coordenadora em sua campanha. Procurei ler seu texto, em busca de alguma explicação para o que, para mim, ainda não fazia sentido. Mas me decepcionei profundamente com seu depoimento.
Em primeiro lugar, não traz novidade nenhuma: quem lê seu texto apenas tem novos “argumentos” (e eu escrevo entre aspas porque não vi nele uma argumentação de fato) para reiterar uma opinião genérica e superficial do que é a política, em geral, e o PT, em particular. O seu depoimento nada faz além de confirmar aquela imagem que se tem do “jogo político” como algo essencialmente ruim e antiético. Em nada remete a alguém que diz ter como sonho “resgatar a crença das pessoas na política”. Porque tudo o que você elogia em Serra é aquilo em que ele parece se afastar da política. Mas isso faz parte da imagem que ele tenta vender, e você ajuda a disseminar: a de que Serra está “além” ou “acima” dos interesses partidários, das disputas políticas. Será mesmo? Quando professores entraram em greve, qual foi a disposição dele para dialogar de forma “republicana”? Não foi isso que eu vi: em todas as entrevistas dele só o que eu via era a tentativa de desqualificar qualquer movimento como “político”. Eu sei, e você também sabe muito bem, que uma declaração como essa também é profundamente política. Como é profundamente política a indisposição para negociar ou dialogar. Bom, eu falo isso como quem assistiu a situação “de fora”, mas não acho que por isso minha opinião - que você deverá dizer que é “apenas uma versão” - deva ser desconsiderada. Afinal, a maior parte da população vê essas coisas como eu - “de fora”. Resumindo, então, o primeiro ponto: você não ajuda a enriquecer o debate criando essa contraposição entre um PT “político” e um Serra “desinteressado”.
Mas a “autoridade” do seu testemunho estaria no fato justamente de ter visto o que ninguém viu, de ter estado “lá dentro”. E é aí, onde eu tinha o maior interesse em conhecer “fatos” e “informações”, o que você apresenta são afirmações vagas, genéricas. Fala de “projetos” da oposição que o Serra apoiou: que projetos foram? Ou de projetos da base aliada que ele vetou? De novo, quais foram? Fala dos “petistas”, e não dá sequer a chance de nenhum deles se defender. O que você faz é uma acusação grave, mas faltam - justamente - informações e dados que ajudem o leitor a entender a circunstância toda.
O caráter “republicano” é exemplificado por você por ter vetado projetos que ele considerava contrários aos interesses públicos, sancionado outros positivos, mesmos que originais da oposição. Mas tudo isso segundo uma concepção que ele tem do que é o bem comum, concorda? Permita-me um exemplo: ele foi um dos grandes promotores da política de arrasa-quarteirão que foi o famigerado projeto Nova Luz. Deste projeto eu poderia falar longamente, como urbanista, mas vou resumir no seguinte: a maioria absoluta dos urbanistas na época foi contrária ao projeto como se apresentou, e não houve grande disposição para diálogo - alguns dos críticos do projeto, como o padre Júlio Lancellotti, foram sistematicamente difamados e desqualificados. O que é o projeto hoje? Um fracasso. Será que não teria sido muito mais produtivo ter ouvido outras pessoas? Além de você, quem mais ele ouviu? Sobre política urbana, por exemplo, quem mais além de Andrea Matarazzo, que se mostrou uma pessoa absolutamente indisposta a negociar e dialogar “republicanamente”, como você tanto preza?
Você enumera várias “realizações” de Serra, mas isto qualquer programa político é capaz de fazer. PT ou PSDB, PMDB ou DEM, todo partido que já foi governo terá sua lista de obras, de projetos iniciados, concluídos... Porque as realizações do Serra são necessariamente melhores? Você coloca como grande feito ter “mantido” os telecentros e os CEUs, mas para mim o mais importante é quem os concebeu. E me desculpe discordar, mas não acho que a manutenção dos CEUs tenha sido mérito apenas de seu convencimento. Houve ampla mobilização e reivindicação para que esses equipamentos não fossem desmantelados e sua concepção fosse preservada.
Enfim, há muito o que poderíamos discutir - políticas públicas, projetos para a cidade, concepção do papel do Estado. Eu acho importantes todas essas discussões, mas não é o que seu texto propõe. Ficamos apenas com uma impressão sua sobre o “caráter” individual de Serra (olhe só: o PSDB ou o DEM não são mencionados uma única vez por você!), em contraposição ao “jogo sujo” de um PT genérico. Bastante injusto, não? Seu texto acaba servindo muito bem a quem já se coloca como “anti-PT”, como tantos (e você, como ex-petista, sabe bem de que tipo de agressividade uma postura como essa pode ser). Mas só isso: pelo seu depoimento, não encontro nada que me ajude a julgar o projeto peessedebista. E o que eu testemunhei não me agradou, honestamente falando. Tudo bem, é apenas minha “opinião”, mas o que li do seu texto também não passa de sua opinião.
Vou terminar dizendo que os motivos que a levaram a deixar o PT são talvez os mesmos que sempre me deixaram em dúvida quanto a participar ativamente da vida partidária, ou seja: a “liberdade” de votar e se expressar exclusivamente conforme minhas convicções pessoais. Acredito que eu, fosse no PT ou em qualquer outro partido, teria problemas em seguir certas orientações, diversas de minhas próprias concepções. Então optei por me manter de fora, e preservar a liberdade de criticar o que achasse necessário. Se você encontrou um partido cujas posições coincidem inteiramente com as suas, ótimo para você. Mas não é honesto de sua parte dizer que somente o PT ou os “petistas” (que nem sei quais exatamente são) fazem esse tipo de “jogo”.
Quando você centra toda a argumentação numa questão de “caráter”, esvazia toda discussão - necessária - sobre que sociedade queremos. E, ao contrário do que tenta nos convencer, não existe unanimidade sobre isso, então não dá para debater na base do “bem comum” versus “interesses particulares”, ou da “postura republicana” versus “guerra suja”. É lamentável que você não tenha feito nada para ir além dessa dicotomia. Quando acusa os petistas de tentarem criar uma imagem de Serra como o Satanás, não está fazendo outra coisa além de também pintar o PT com essas mesmas tintas. Por que, então, uma coisa é tão condenável e a outra tão natural? Como pode querer que eu acredite que seu testemunho é imparcial quando você, do mesmo jeito que os petistas que critica, não se mostra capaz de reconhecer o que seus adversários propuseram ou fizeram de bom? E se nem você é capaz disso, o que me faria acreditar que seu candidato, seu partido, sua coligação, seriam capazes? Se você tem respostas para isso, porque insistiu numa argumentação reducionista, caricata, sentimental? Vindo de outra pessoa, eu teria imaginado que era apenas um texto raso, superficial e inocente de alguém que não consegue ir além da pobreza do debate político que temos testemunhado nestas eleições. Sendo você, jornalista e comunicadora, política e “uma das principais lideranças políticas” de seu partido (como ele mesmo se refere a você na página do partido) não consigo imaginar que não tenha escrito um texto com palavras muito cuidadosamente escolhidas e um tom meticulosamente estudado, para que os “antipetistas” pelo Brasil afora tenham supostamente “argumentos” para desqualificar qualquer projeto ou proposta do atual governo. Com uma suposta autoridade, conferida por quem esteve “do lado de lá” e, vendo os “horrores” daquele monstro que é o PT segundo seus olhos, decidiu se unir ao lado oposto.
Seu depoimento não é isento, não é objetivo, sequer equilibrado. Por isso, não é inocente. E você sabe disso.

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