29 de outubro de 2012

Jane Jacobs contra a Cidade de Muros

Há tempo havia iniciado uma discussão sobre segurança e o Campus da USP; por algum motivo, um post que escrevi a respeito se perdeu, e nele eu prometia uma continuação. Aqui está o que seria essa "continuação", sem o tema que lhe deu origem (paciência, a questão saiu um pouco dos holofotes da mídia, embora a militarização do campus não tenha sido revertida até o momento). Aqui, o foco não será tanto a questão universitária, mas sim a concepção de segurança que justifica a formação da “cidade de muros” e a maneira de lidar com a “insegurança” da cidade atual. Esta concepção de segurança, poderemos ver, é intimamente ligada à maneira como a segurança tem sido praticada também na Cidade Universitária da USP em São Paulo – e não poderia ser diferente, sendo a universidade parte da sociedade (por mais que seus dirigentes insistam em tratá-la como uma entidade isolada desta).
A questão que eu propunha a discutir era a seguinte: será o fechamento a melhor forma de lidar com a questão da segurança? A esta questão acrescento outra, que será o foco da discussão aqui: há algo que o urbanismo tenha a dizer a respeito desta questão e a contribuir para seu encaminhamento?
Um texto já clássico do Urbanismo, da socióloga e escritora norteamericana Jane Jacobs, dedica um capítulo inteiro a discutir o papel das ruas na promoção da segurança. As proposições de Jacobs não podem deixar de ser consideradas provocativas, polêmicas, mas têm sua validade, sobretudo no papel de desmantelar e colocar em xeque algumas concepções e preconceitos comuns sobre o que causa a “insegurança” nas cidades, e a maneira como lidar com ela. Apresentar e discutir brevemente essas proposições são os objetivos básicos deste texto.
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Logo de cara, a autora vai diretamente de encontro a uma das concepções mais arraigadas de uma cidade como São Paulo: “As ruas das cidades servem a vários fins além de comportar veículos; e as calçadas – a parte das ruas que cabe aos pedestres – servem a muitos fins além de abrigar pedestres”. Parece uma formulação banal, mas não é. As funções das ruas e calçadas não se limitam à circulação e ao deslocamento. Não são, em outras palavras, apenas lugares de passagem, mas também de permanência. As ruas e calçadas só fazem sentido se consideradas junto com as atividades que a moldam: “A calçada por si só não é nada. É uma abstração. Ela só significa alguma coisa junto com os edifícios e os outros usos limítrofes a ela ou a calçadas próximas” (p. 29).
O que isto tem a ver com a segurança urbana? Bem, uma das características intrínsecas às grandes cidades é a “multidão”, a grande concentração de pessoas que não têm necessariamente vínculos entre si: as metrópoles “estão, por definição, cheias de desconhecidos”, diz a autora, acrescentando que “mesmo morando próximas umas das outras, as pessoas são desconhecidas”. A presença do “estranho” não é, portanto, a condição para a segurança, uma vez que este é parte constituinte da própria metrópole. Inversamente, é preciso pensar em como promover a segurança (ou, melhor dizendo, a sensação de segurança) mesmo na presença do desconhecido.
O destaque dado ao fato de que se trata de uma sensação de segurança se justifica porque a sensação não se baseia necessariamente numa realidade objetiva: “Não é preciso haver muitos casos de violência numa rua ou num distrito para que as pessoas temam as ruas. E, quando temem as ruas, as pessoas as usam menos, o que torna as ruas ainda mais inseguras” (p. 30). Pois é este círculo vicioso que, em São Paulo, em vez de ser combatido, é continuamente reforçado. Ruas repletas de muros fechados não são mais, e sim, menos seguras.
Além disso, o problema da violência e insegurança não pode ser atribuído a: (i) os cortiços, (ii) as áreas mais antigas da cidade, (iii) os grupos minoritários, pobres ou marginalizados. Esta proposição é mais dificilmente aceita pelo senso comum, que associa rapidamente pobreza, marginalidade e violência. Mas quem vive em uma dessas áreas ou pertence a esses grupos deve ter percebido que há lugares e lugares, grupos e grupos. Mesmo nas periferias mais “violentas” há locais em que os moradores se sentem mais confortáveis e seguros de andar, da mesma forma que em certos bairros ricos e luxuosos as ruas são absolutamente ermas, causando grande receio em quem as percorre.
Ocorre que, independentemente do perfil socioeconômico da população que habita ou permanece no entorno dessas ruas, obtém-se a sensação de segurança pela conjugação de múltiplos fatores, dos quais mesmo o policiamento é secundário. A ordem pública não é mantida basicamente pela polícia, mas “fundamentalmente pela rede intrincada, quase inconsciente, de controles e padrões de comportamento espontâneos presentes em meio ao próprio povo e por ele aplicados”. Uma vez que a segurança – e, especialmente, a sensação de segurança – depende dessa rede de comportamentos, é preciso que a rede seja grande o suficiente para produzir “comportamentos espontâneos” em relação ao lugar, e isso não pode ser obtido de uma população rarefeita e esparsa. Daí que “o problema da insegurança não pode ser solucionado por meio da dispersão das pessoas”. Mais gente, mais olhos, mais usos, mais segurança.
No entanto, para que mais gente signifique também mais usos, é preciso que haja gente de diferentes tipos. Do contrário, em lugar de haver mais usos, haverá apenas uma intensificação do mesmo uso. É preciso ser possível acolher diversos usuários com práticas e interesses diferentes, e isso também inclui acolher “estranhos”. As condições para isso, de acordo com Jacobs, seriam três (aqui está um dos pontos fundamentais de sua análise):
  • Nítida a separação entre o espaço público e o espaço privado: em franca oposição à diluição modernista (corbusiana ou howardiana) entre espaços públicos e privados das propostas, Jacobs defende que a separação entre ambos seja nítida, definindo claramente os espaços pelos quais cada usuário se sente individualmente responsável. Esta tese contraria, decerto, a maioria das proposições de inspiração socialista, e aqui se evidencia a filiação de Jacobs a um paradigma liberal. 
  • Olhos para a rua: os edifícios devem estar voltados para a rua: condição lógica para que a rua seja “vigiada” é que tenha locais de onde observá-la. A crítica é às “empenas cegas”, grandes paredes de edifícios que, voltando-se para o miolo da quadra, desprezam a rua e a circulação. Sob o pretexto do conforto e do silêncio, é muito comum que se volte para as ruas os cômodos de serviços e as áreas molhadas da casa, reduzindo a possibilidade de que as áreas de permanência internas aos edifícios aproveitem-se da “paisagem” e das “vistas”.
  • A calçada deve ter usuários transitando ininterruptamente, “tanto para aumentar o número de olhos atentos quanto para induzir um número suficiente de pessoas de dentro dos edifícios da rua a observar as calçadas”. Os “olhos da rua” garantem a observação “de fora” e “do alto”, mas esta não é suficiente: mais importante ainda é a visão “de dentro” e do nível da rua. Esta só pode ser garantida com um número razoável de transeuntes, usuários da rua, durante a maior parte possível do tempo.
O enfoque de segurança urbana de Jacobs incide principalmente sobre o uso da cidade, muito mais do que ao policiamento. Para ela, “é inútil tentar esquivar-se da questão da insegurança urbana tentando tornar mais seguros outros elementos da localidade, como pátios internos ou áreas de recreação cercadas” (p. 36). Ou seja: enclaves fortificados e vigiados não tornam a cidade mais segura. Ao invés disso, apenas agravam uma situação de tensão social, ao enfatizar a desconfiança em relação ao “estranho” e, portanto, a hostilidade contra os desconhecidos, tidos como potenciais “criminosos”. A estratégia de segurança das ruas que Jacobs considera mais adequada é assim descrita pela autora: “A segurança das ruas é mais eficaz, mais informal e envolve menos traços de hostilidade e desconfiança exatamente quando as pessoas as utilizam e usufruem espontaneamente e estão menos conscientes, de maneira geral, que estão vigiando” (p. 37).Mesmo o recurso à iluminação deve ser relativizado: aumenta o alcance da vista, mas não tornam a rua mais segura por si só.
Para que esta vigilância inconsciente ocorra, seria preciso que um “requisito básico” de vigilância fosse assegurado, e ele consiste na presença de certo número de estabelecimentos e outros locais públicos, dispostos ao longo das calçadas e, entre eles, estabelecimentos que sejam utilizados de noite. Os benefícios são enumerados da seguinte forma:
  • Dão às pessoas motivos para usarem as calçadas;
  • Fazem com que as pessoas as percorram;
  • Os próprios lojistas e outros pequenos comerciantes costumam incentivar a ordem;
  • A movimentação de pessoas em si é um atrativo para mais pessoas.
Isso representa uma importante mudança de perspectiva, e requer que certas concepções, que Jacobs considera “puritanas e utópicas” do planejamento urbano ortodoxo sejam abandonadas. Entre essas, um modelo normativo de “como as pessoas devem gastar seu tempo livre” e, estendendo esse modelo à cidade, a confusão entre esse “moralismo” e “conceitos referentes ao funcionamento das cidades”: essa confusão resulta em que “os bares e, na verdade, todo o comércio, são malvistos em vários bairros precisamente porque atraem estranhos” (p. 42). Não há como não pensar em São Paulo ao considerar essa observação. A vida noturna da cidade não a torna mais insegura, pelo contrário. A circulação de pessoas em diversos horários do dia – o que significa que são também pessoas diversas – é amplamente desejável, e não um problema. “As cidades não apenas têm espaço para essas diferenças e outras mais em relação a gostos, propósitos e ocupações; também precisam de pessoas com todas essas diferenças”.
Essa diversidade é não apenas útil e desejável: em grande parte, ela é inevitável. A menos a porção pública da cidade (seus espaços não domésticos, não privativos) é necessariamente aberta à frequentação por pessoas de fora. Ignorar isso provoca, segundo Jacobs, uma de duas conseqüências: ou as pessoas de fora continuarão a frequentar o local, “e haverá entre elas estranhos que não são nem um pouco bem-comportados”, ou serão propostas medidas para manter as pessoas de fora afastadas do local. O resultado, tanto num caso como noutro, é a sensação de insegurança: as pessoas “estranhas” serão percebidas como ameaçadoras, e ao mesmo tempo perceberão a hostilidade dirigidas a elas, reagindo àquela hostilidade. Seguindo este modelo de atuação que tenta negar a diversidade e a presença do “estranho”, restam três maneiras de conviver com a insegurança:
  1. “Deixar o perigo reinar absoluto e deixar que os infelizes que defrontarem com ele sofram as conseqüências”. Maneira como as regiões periféricas das cidades brasileiras, São Paulo em particular, têm sido tratadas historicamente pelas elites; 
  2. “Refugiar-se em veículos”, estratégia que produz um círculo vicioso: carros-refúgio são mais visados, e à insegurança neles se responde com blindagens e apetrechos de segurança cada vez mais sofisticados, caros – e não necessariamente mais eficazes; 
  3. “Cultivar a instituição do Território”, isto é, enclaves fechados e protegidos em si mesmos, com severas restrições à entrada de desconhecidos e com uma população homogeneizada e seleta. Estratégia de exclusão e privatização dos espaços, porém limitando sua atuação aos seus espaços confinados, sem capacidade de promover qualquer melhoria na segurança do entorno, do contexto mais geral.
Resta pouca dúvida de que, em São Paulo, essas têm sido as maneiras de lidar com a “insegurança” e a “violência”. Aqui, traduzem-se no isolamento entre grupos sociais e a “condenação” de populações inteiras às ações de uma polícia que não hesita em fazer uso da violência; no emprego cada vez maior automóveis e na recusa ao transporte público; na constituição de espaços fortificados e militarizados, dos edifícios de escritórios, shopping centers e condomínios fechados; no emprego de segurança privada (e privativa). Enquanto respostas emotivas e desinformadas a uma sensação de insegurança, é compreensível que estas sejam as “soluções” dadas ao problema. Por uma perspectiva mais ampla e aprofundada do problema, contudo, esta solução não apenas é ineficaz e inútil: é também contraproducente, produzindo um “círculo vicioso” em que a violência tende a gerar apenas mais violência, em que a insegurança produz apenas mais insegurança. É preciso, portanto, romper com este padrão.










4 de fevereiro de 2012

Dez pontos sobre direito de propriedade e direito à moradia

A reação de boa parte da população de bem aos recentes episódios de reintegração de posse (em especial o Pinheirinho) foi reveladora. Parece haver certo rancor em relação aos movimentos sociais e às conquistas que esses arrancam (arrancam, não ganham) aos governos, como se essas fossem privilégios; e há uma defesa intransigente do direito do proprietário de fazer o que quiser daquilo que é seu. A isso está associado ainda um medo bastante infundado de que a defesa de movimentos sociais que têm como modus operandi as ocupações abra brecha para um movimento “desenfreado” de “invasões” indiscriminadas.

É possível escrever um tratado sobre essas questões (na verdade, numerosos livros já foram escritos, e qualquer um que tenha real interesse na discussão sobre a questão da moradia e habitação tem muito material à disposição). Mas, no espaço de um texto de internet, acho que vale mais a pena pontuar alguns aspectos. Claro que fico à disposição para discuti-los, na medida das minhas condições (de tempo, principalmente….). Aqui vão:

  1. Direito não é privilégio. Se os direitos não são para todos, quem está errado não é quem conseguiu fazer valer o seu direito, e sim quem continua atuando para que os direitos não alcancem todos os demais. Então, em vez de reclamar de quem conseguiu, temos é que lutar para que todos os outros também consigam. Muita gente acha que “se o meu direito não é respeitado, por que o dos outros é?”. E daí parece derivar a ideia de que “se eu não tenho, que ninguém tenha”. É uma inversão, o raciocínio que eu defendo é: lutemos pelos direitos para todos. Se eu não tenho e outros mostram que, coletivamente, é possível conquistar a realização de direitos, aí está o caminho: a reivindicação coletiva.
  2. Especificamente em relação à moradia, acredito que, independentemente da condição econômica, nenhum ser humano pode viver sem um abrigo. Se não pode arcar com a compra de um imóvel, isso deve significar que ele não terá como bancar seu conforto e nenhum “luxo”. Mas um teto não é luxo e é muito mais do que conforto: é condição básica de sobrevivência.
  3. Programa habitacional, portanto, não é caridade – é garantia de condições mínimas (e são, de fato, mínimas: não conheço nenhum conjunto habitacional que possa ser considerado mais confortável e luxuoso do que um condomínio privado.
  4. Mesmo que fosse caridade: a maioria das (se não todas) religiões ensinam a caridade e a solidariedade com quem sofre. Será que as pessoas que demonstram tanta raiva contra os que moram nessas condições não conseguem se apiedar em nenhum momento contra o que é, antes de tudo, sofrimento? Basta que nos coloquemos no lugar, por um instante, daqueles que não têm teto…
  5. Ocupação é diferente de invasão: basicamente, a diferença é que no primeiro caso a área ocupada está vazia, enquanto uma invasão envolve a expulsão de quem ocupava o lugar. Os moradores do Pinheirinho ocuparam uma área completamente abandonada. A polícia invadiu essa ocupação e expulsou quem ali estava. Ou seja, caro leitor: você não precisa ter medo de um dia ser expulso da sua casa por “invasores”. Se você ocupa sua propriedade, você será respeitado.
  6. Mas se o terreno tem dono, o dono pode fazer o que quiser com ele, até deixá-lo abandonado, certo? Errado. A Constituição, ao mesmo tempo em que garante o direito de propriedade, obriga a propriedade a ter algum uso que demonstre que ela cumpre uma função social. Se é habitada, ou se abriga qualquer atividade produtiva, ou mesmo se é destinada ao lazer no fim de semana, ela cumpre uma função. Se ela é preservada para fins de conservação ambiental, mesmo que ninguém ali more, também cumpre. Se ela é deixada “ao léu”, abandonada e sem nenhuma destinação para ela, não cumpre. Está, diante da constituição, em situação irregular – para não dizer ilegal.
  7. Para que serve, então, o direito de propriedade? Serve para que quem possui uma propriedade pode decidir qual função social quer dar a ela – qualquer uma, mas necessariamente alguma. Também garante ao proprietário o direito de se desfazer dela da maneira que julgar conveniente: doar, vender, alugar, arrendar, emprestar, etc. Também garante que, se o governo decidir dar qualquer outro uso àquela área, o proprietário tem o direito de ter sua propriedade adquirida – comprada, ou “desapropriada” – mediante indenização correspondente ao valor daquela propriedade. Esse valor tem que ser estabelecido e acordado.
  8. Reintegração de posse: se a propriedade cumpre uma função social, e mesmo assim é ocupada ou invadida, o proprietário tem o direito de reivindicar sua reintegração. E esse é o argumento usado sempre para justificar as ações recentes. Mas, na minha opinião, ela só se justifica se aquela condição básica (“a propriedade cumpre uma função social”) é atendida. Aqui não estou falando como jurista, advogado ou nada disso, que eu não sou. Mas acho que consigo entender o “espírito da lei” mesmo quando não domino a “letra da lei”.
  9. Por último, há uma idéia de que quem “descumpre” a lei deve ser “castigado”, e daí qualquer ação violenta da polícia se justifica. Eu vejo uma diferença fundamental entre a noção de “punição” e a de “castigo”: sem querer entrar em debates semânticos, eu acredito que uma punição que respeite direitos humanos é aquela em que a pessoa punida é privada de certos direitos (por exemplo, um preso é privado do direito de ir e vir). E alguns direitos são “inalienáveis”, ou seja, ninguém pode ser privado deles: o direito à vida, o direito à integridade física, são dois dos principais. Então, o “castigo” que envolva causar dor ou danos físicos não pode ser aceito. E nem é necessário: existem formas de punir sem castigar.
  10. Não há nenhuma prova definitiva de que o castigo cumpra de fato qualquer função disciplinadora eficaz. É possível que cause revolta, medo, desejo de vingança, pode causar os mais diversos traumas psicológicos. Não há nenhuma garantia de que necessariamente, vá “corrigir” ninguém. A pedagogia de hoje ensina que o exemplo, a motivação são muito mais eficazes. Punições são possíveis, desde que associem claramente a infração com a correção.