A reação de boa parte da população de bem aos recentes episódios de reintegração de posse (em especial o Pinheirinho) foi reveladora. Parece haver certo rancor em relação aos movimentos sociais e às conquistas que esses arrancam (arrancam, não ganham) aos governos, como se essas fossem privilégios; e há uma defesa intransigente do direito do proprietário de fazer o que quiser daquilo que é seu. A isso está associado ainda um medo bastante infundado de que a defesa de movimentos sociais que têm como modus operandi as ocupações abra brecha para um movimento “desenfreado” de “invasões” indiscriminadas.
É possível escrever um tratado sobre essas questões (na verdade, numerosos livros já foram escritos, e qualquer um que tenha real interesse na discussão sobre a questão da moradia e habitação tem muito material à disposição). Mas, no espaço de um texto de internet, acho que vale mais a pena pontuar alguns aspectos. Claro que fico à disposição para discuti-los, na medida das minhas condições (de tempo, principalmente….). Aqui vão:
- Direito não é privilégio. Se os direitos não são para todos, quem está errado não é quem conseguiu fazer valer o seu direito, e sim quem continua atuando para que os direitos não alcancem todos os demais. Então, em vez de reclamar de quem conseguiu, temos é que lutar para que todos os outros também consigam. Muita gente acha que “se o meu direito não é respeitado, por que o dos outros é?”. E daí parece derivar a ideia de que “se eu não tenho, que ninguém tenha”. É uma inversão, o raciocínio que eu defendo é: lutemos pelos direitos para todos. Se eu não tenho e outros mostram que, coletivamente, é possível conquistar a realização de direitos, aí está o caminho: a reivindicação coletiva.
- Especificamente em relação à moradia, acredito que, independentemente da condição econômica, nenhum ser humano pode viver sem um abrigo. Se não pode arcar com a compra de um imóvel, isso deve significar que ele não terá como bancar seu conforto e nenhum “luxo”. Mas um teto não é luxo e é muito mais do que conforto: é condição básica de sobrevivência.
- Programa habitacional, portanto, não é caridade – é garantia de condições mínimas (e são, de fato, mínimas: não conheço nenhum conjunto habitacional que possa ser considerado mais confortável e luxuoso do que um condomínio privado.
- Mesmo que fosse caridade: a maioria das (se não todas) religiões ensinam a caridade e a solidariedade com quem sofre. Será que as pessoas que demonstram tanta raiva contra os que moram nessas condições não conseguem se apiedar em nenhum momento contra o que é, antes de tudo, sofrimento? Basta que nos coloquemos no lugar, por um instante, daqueles que não têm teto…
- Ocupação é diferente de invasão: basicamente, a diferença é que no primeiro caso a área ocupada está vazia, enquanto uma invasão envolve a expulsão de quem ocupava o lugar. Os moradores do Pinheirinho ocuparam uma área completamente abandonada. A polícia invadiu essa ocupação e expulsou quem ali estava. Ou seja, caro leitor: você não precisa ter medo de um dia ser expulso da sua casa por “invasores”. Se você ocupa sua propriedade, você será respeitado.
- Mas se o terreno tem dono, o dono pode fazer o que quiser com ele, até deixá-lo abandonado, certo? Errado. A Constituição, ao mesmo tempo em que garante o direito de propriedade, obriga a propriedade a ter algum uso que demonstre que ela cumpre uma função social. Se é habitada, ou se abriga qualquer atividade produtiva, ou mesmo se é destinada ao lazer no fim de semana, ela cumpre uma função. Se ela é preservada para fins de conservação ambiental, mesmo que ninguém ali more, também cumpre. Se ela é deixada “ao léu”, abandonada e sem nenhuma destinação para ela, não cumpre. Está, diante da constituição, em situação irregular – para não dizer ilegal.
- Para que serve, então, o direito de propriedade? Serve para que quem possui uma propriedade pode decidir qual função social quer dar a ela – qualquer uma, mas necessariamente alguma. Também garante ao proprietário o direito de se desfazer dela da maneira que julgar conveniente: doar, vender, alugar, arrendar, emprestar, etc. Também garante que, se o governo decidir dar qualquer outro uso àquela área, o proprietário tem o direito de ter sua propriedade adquirida – comprada, ou “desapropriada” – mediante indenização correspondente ao valor daquela propriedade. Esse valor tem que ser estabelecido e acordado.
- Reintegração de posse: se a propriedade cumpre uma função social, e mesmo assim é ocupada ou invadida, o proprietário tem o direito de reivindicar sua reintegração. E esse é o argumento usado sempre para justificar as ações recentes. Mas, na minha opinião, ela só se justifica se aquela condição básica (“a propriedade cumpre uma função social”) é atendida. Aqui não estou falando como jurista, advogado ou nada disso, que eu não sou. Mas acho que consigo entender o “espírito da lei” mesmo quando não domino a “letra da lei”.
- Por último, há uma idéia de que quem “descumpre” a lei deve ser “castigado”, e daí qualquer ação violenta da polícia se justifica. Eu vejo uma diferença fundamental entre a noção de “punição” e a de “castigo”: sem querer entrar em debates semânticos, eu acredito que uma punição que respeite direitos humanos é aquela em que a pessoa punida é privada de certos direitos (por exemplo, um preso é privado do direito de ir e vir). E alguns direitos são “inalienáveis”, ou seja, ninguém pode ser privado deles: o direito à vida, o direito à integridade física, são dois dos principais. Então, o “castigo” que envolva causar dor ou danos físicos não pode ser aceito. E nem é necessário: existem formas de punir sem castigar.
- Não há nenhuma prova definitiva de que o castigo cumpra de fato qualquer função disciplinadora eficaz. É possível que cause revolta, medo, desejo de vingança, pode causar os mais diversos traumas psicológicos. Não há nenhuma garantia de que necessariamente, vá “corrigir” ninguém. A pedagogia de hoje ensina que o exemplo, a motivação são muito mais eficazes. Punições são possíveis, desde que associem claramente a infração com a correção.