Há tempo havia iniciado uma discussão sobre segurança e o Campus da USP; por algum motivo, um post que escrevi a respeito se perdeu, e nele eu prometia uma continuação. Aqui está o que seria essa "continuação", sem o tema que lhe deu origem (paciência, a questão saiu um pouco dos holofotes da mídia, embora a militarização do campus não tenha sido revertida até o momento). Aqui, o foco não será tanto a questão universitária, mas sim a concepção de segurança que justifica a formação da “cidade de muros” e a maneira de lidar com a “insegurança” da cidade atual. Esta concepção de segurança, poderemos ver, é intimamente ligada à maneira como a segurança tem sido praticada também na Cidade Universitária da USP em São Paulo – e não poderia ser diferente, sendo a universidade parte da sociedade (por mais que seus dirigentes insistam em tratá-la como uma entidade isolada desta).
A questão que eu propunha a discutir era a seguinte: será o fechamento a melhor forma de lidar com a questão da segurança? A esta questão acrescento outra, que será o foco da discussão aqui: há algo que o urbanismo tenha a dizer a respeito desta questão e a contribuir para seu encaminhamento?
Um texto já clássico do Urbanismo, da socióloga e escritora norteamericana Jane Jacobs, dedica um capítulo inteiro a discutir o papel das ruas na promoção da segurança. As proposições de Jacobs não podem deixar de ser consideradas provocativas, polêmicas, mas têm sua validade, sobretudo no papel de desmantelar e colocar em xeque algumas concepções e preconceitos comuns sobre o que causa a “insegurança” nas cidades, e a maneira como lidar com ela. Apresentar e discutir brevemente essas proposições são os objetivos básicos deste texto.
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Logo de cara, a autora vai diretamente de encontro a uma das concepções mais arraigadas de uma cidade como São Paulo: “As ruas das cidades servem a vários fins além de comportar veículos; e as calçadas – a parte das ruas que cabe aos pedestres – servem a muitos fins além de abrigar pedestres”. Parece uma formulação banal, mas não é. As funções das ruas e calçadas não se limitam à circulação e ao deslocamento. Não são, em outras palavras, apenas lugares de passagem, mas também de permanência. As ruas e calçadas só fazem sentido se consideradas junto com as atividades que a moldam: “A calçada por si só não é nada. É uma abstração. Ela só significa alguma coisa junto com os edifícios e os outros usos limítrofes a ela ou a calçadas próximas” (p. 29).
O que isto tem a ver com a segurança urbana? Bem, uma das características intrínsecas às grandes cidades é a “multidão”, a grande concentração de pessoas que não têm necessariamente vínculos entre si: as metrópoles “estão, por definição, cheias de desconhecidos”, diz a autora, acrescentando que “mesmo morando próximas umas das outras, as pessoas são desconhecidas”. A presença do “estranho” não é, portanto, a condição para a segurança, uma vez que este é parte constituinte da própria metrópole. Inversamente, é preciso pensar em como promover a segurança (ou, melhor dizendo, a sensação de segurança) mesmo na presença do desconhecido.
O destaque dado ao fato de que se trata de uma sensação de segurança se justifica porque a sensação não se baseia necessariamente numa realidade objetiva: “Não é preciso haver muitos casos de violência numa rua ou num distrito para que as pessoas temam as ruas. E, quando temem as ruas, as pessoas as usam menos, o que torna as ruas ainda mais inseguras” (p. 30). Pois é este círculo vicioso que, em São Paulo, em vez de ser combatido, é continuamente reforçado. Ruas repletas de muros fechados não são mais, e sim, menos seguras.
Além disso, o problema da violência e insegurança não pode ser atribuído a: (i) os cortiços, (ii) as áreas mais antigas da cidade, (iii) os grupos minoritários, pobres ou marginalizados. Esta proposição é mais dificilmente aceita pelo senso comum, que associa rapidamente pobreza, marginalidade e violência. Mas quem vive em uma dessas áreas ou pertence a esses grupos deve ter percebido que há lugares e lugares, grupos e grupos. Mesmo nas periferias mais “violentas” há locais em que os moradores se sentem mais confortáveis e seguros de andar, da mesma forma que em certos bairros ricos e luxuosos as ruas são absolutamente ermas, causando grande receio em quem as percorre.
Ocorre que, independentemente do perfil socioeconômico da população que habita ou permanece no entorno dessas ruas, obtém-se a sensação de segurança pela conjugação de múltiplos fatores, dos quais mesmo o policiamento é secundário. A ordem pública não é mantida basicamente pela polícia, mas “fundamentalmente pela rede intrincada, quase inconsciente, de controles e padrões de comportamento espontâneos presentes em meio ao próprio povo e por ele aplicados”. Uma vez que a segurança – e, especialmente, a sensação de segurança – depende dessa rede de comportamentos, é preciso que a rede seja grande o suficiente para produzir “comportamentos espontâneos” em relação ao lugar, e isso não pode ser obtido de uma população rarefeita e esparsa. Daí que “o problema da insegurança não pode ser solucionado por meio da dispersão das pessoas”. Mais gente, mais olhos, mais usos, mais segurança.
No entanto, para que mais gente signifique também mais usos, é preciso que haja gente de diferentes tipos. Do contrário, em lugar de haver mais usos, haverá apenas uma intensificação do mesmo uso. É preciso ser possível acolher diversos usuários com práticas e interesses diferentes, e isso também inclui acolher “estranhos”. As condições para isso, de acordo com Jacobs, seriam três (aqui está um dos pontos fundamentais de sua análise):
Para que esta vigilância inconsciente ocorra, seria preciso que um “requisito básico” de vigilância fosse assegurado, e ele consiste na presença de certo número de estabelecimentos e outros locais públicos, dispostos ao longo das calçadas e, entre eles, estabelecimentos que sejam utilizados de noite. Os benefícios são enumerados da seguinte forma:
Essa diversidade é não apenas útil e desejável: em grande parte, ela é inevitável. A menos a porção pública da cidade (seus espaços não domésticos, não privativos) é necessariamente aberta à frequentação por pessoas de fora. Ignorar isso provoca, segundo Jacobs, uma de duas conseqüências: ou as pessoas de fora continuarão a frequentar o local, “e haverá entre elas estranhos que não são nem um pouco bem-comportados”, ou serão propostas medidas para manter as pessoas de fora afastadas do local. O resultado, tanto num caso como noutro, é a sensação de insegurança: as pessoas “estranhas” serão percebidas como ameaçadoras, e ao mesmo tempo perceberão a hostilidade dirigidas a elas, reagindo àquela hostilidade. Seguindo este modelo de atuação que tenta negar a diversidade e a presença do “estranho”, restam três maneiras de conviver com a insegurança:
A questão que eu propunha a discutir era a seguinte: será o fechamento a melhor forma de lidar com a questão da segurança? A esta questão acrescento outra, que será o foco da discussão aqui: há algo que o urbanismo tenha a dizer a respeito desta questão e a contribuir para seu encaminhamento?
Um texto já clássico do Urbanismo, da socióloga e escritora norteamericana Jane Jacobs, dedica um capítulo inteiro a discutir o papel das ruas na promoção da segurança. As proposições de Jacobs não podem deixar de ser consideradas provocativas, polêmicas, mas têm sua validade, sobretudo no papel de desmantelar e colocar em xeque algumas concepções e preconceitos comuns sobre o que causa a “insegurança” nas cidades, e a maneira como lidar com ela. Apresentar e discutir brevemente essas proposições são os objetivos básicos deste texto.
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Logo de cara, a autora vai diretamente de encontro a uma das concepções mais arraigadas de uma cidade como São Paulo: “As ruas das cidades servem a vários fins além de comportar veículos; e as calçadas – a parte das ruas que cabe aos pedestres – servem a muitos fins além de abrigar pedestres”. Parece uma formulação banal, mas não é. As funções das ruas e calçadas não se limitam à circulação e ao deslocamento. Não são, em outras palavras, apenas lugares de passagem, mas também de permanência. As ruas e calçadas só fazem sentido se consideradas junto com as atividades que a moldam: “A calçada por si só não é nada. É uma abstração. Ela só significa alguma coisa junto com os edifícios e os outros usos limítrofes a ela ou a calçadas próximas” (p. 29).
O que isto tem a ver com a segurança urbana? Bem, uma das características intrínsecas às grandes cidades é a “multidão”, a grande concentração de pessoas que não têm necessariamente vínculos entre si: as metrópoles “estão, por definição, cheias de desconhecidos”, diz a autora, acrescentando que “mesmo morando próximas umas das outras, as pessoas são desconhecidas”. A presença do “estranho” não é, portanto, a condição para a segurança, uma vez que este é parte constituinte da própria metrópole. Inversamente, é preciso pensar em como promover a segurança (ou, melhor dizendo, a sensação de segurança) mesmo na presença do desconhecido.
O destaque dado ao fato de que se trata de uma sensação de segurança se justifica porque a sensação não se baseia necessariamente numa realidade objetiva: “Não é preciso haver muitos casos de violência numa rua ou num distrito para que as pessoas temam as ruas. E, quando temem as ruas, as pessoas as usam menos, o que torna as ruas ainda mais inseguras” (p. 30). Pois é este círculo vicioso que, em São Paulo, em vez de ser combatido, é continuamente reforçado. Ruas repletas de muros fechados não são mais, e sim, menos seguras.
Além disso, o problema da violência e insegurança não pode ser atribuído a: (i) os cortiços, (ii) as áreas mais antigas da cidade, (iii) os grupos minoritários, pobres ou marginalizados. Esta proposição é mais dificilmente aceita pelo senso comum, que associa rapidamente pobreza, marginalidade e violência. Mas quem vive em uma dessas áreas ou pertence a esses grupos deve ter percebido que há lugares e lugares, grupos e grupos. Mesmo nas periferias mais “violentas” há locais em que os moradores se sentem mais confortáveis e seguros de andar, da mesma forma que em certos bairros ricos e luxuosos as ruas são absolutamente ermas, causando grande receio em quem as percorre.
Ocorre que, independentemente do perfil socioeconômico da população que habita ou permanece no entorno dessas ruas, obtém-se a sensação de segurança pela conjugação de múltiplos fatores, dos quais mesmo o policiamento é secundário. A ordem pública não é mantida basicamente pela polícia, mas “fundamentalmente pela rede intrincada, quase inconsciente, de controles e padrões de comportamento espontâneos presentes em meio ao próprio povo e por ele aplicados”. Uma vez que a segurança – e, especialmente, a sensação de segurança – depende dessa rede de comportamentos, é preciso que a rede seja grande o suficiente para produzir “comportamentos espontâneos” em relação ao lugar, e isso não pode ser obtido de uma população rarefeita e esparsa. Daí que “o problema da insegurança não pode ser solucionado por meio da dispersão das pessoas”. Mais gente, mais olhos, mais usos, mais segurança.
No entanto, para que mais gente signifique também mais usos, é preciso que haja gente de diferentes tipos. Do contrário, em lugar de haver mais usos, haverá apenas uma intensificação do mesmo uso. É preciso ser possível acolher diversos usuários com práticas e interesses diferentes, e isso também inclui acolher “estranhos”. As condições para isso, de acordo com Jacobs, seriam três (aqui está um dos pontos fundamentais de sua análise):
- Nítida a separação entre o espaço público e o espaço privado: em franca oposição à diluição modernista (corbusiana ou howardiana) entre espaços públicos e privados das propostas, Jacobs defende que a separação entre ambos seja nítida, definindo claramente os espaços pelos quais cada usuário se sente individualmente responsável. Esta tese contraria, decerto, a maioria das proposições de inspiração socialista, e aqui se evidencia a filiação de Jacobs a um paradigma liberal.
- Olhos para a rua: os edifícios devem estar voltados para a rua: condição lógica para que a rua seja “vigiada” é que tenha locais de onde observá-la. A crítica é às “empenas cegas”, grandes paredes de edifícios que, voltando-se para o miolo da quadra, desprezam a rua e a circulação. Sob o pretexto do conforto e do silêncio, é muito comum que se volte para as ruas os cômodos de serviços e as áreas molhadas da casa, reduzindo a possibilidade de que as áreas de permanência internas aos edifícios aproveitem-se da “paisagem” e das “vistas”.
- A calçada deve ter usuários transitando ininterruptamente, “tanto para aumentar o número de olhos atentos quanto para induzir um número suficiente de pessoas de dentro dos edifícios da rua a observar as calçadas”. Os “olhos da rua” garantem a observação “de fora” e “do alto”, mas esta não é suficiente: mais importante ainda é a visão “de dentro” e do nível da rua. Esta só pode ser garantida com um número razoável de transeuntes, usuários da rua, durante a maior parte possível do tempo.
Para que esta vigilância inconsciente ocorra, seria preciso que um “requisito básico” de vigilância fosse assegurado, e ele consiste na presença de certo número de estabelecimentos e outros locais públicos, dispostos ao longo das calçadas e, entre eles, estabelecimentos que sejam utilizados de noite. Os benefícios são enumerados da seguinte forma:
- Dão às pessoas motivos para usarem as calçadas;
- Fazem com que as pessoas as percorram;
- Os próprios lojistas e outros pequenos comerciantes costumam incentivar a ordem;
- A movimentação de pessoas em si é um atrativo para mais pessoas.
Essa diversidade é não apenas útil e desejável: em grande parte, ela é inevitável. A menos a porção pública da cidade (seus espaços não domésticos, não privativos) é necessariamente aberta à frequentação por pessoas de fora. Ignorar isso provoca, segundo Jacobs, uma de duas conseqüências: ou as pessoas de fora continuarão a frequentar o local, “e haverá entre elas estranhos que não são nem um pouco bem-comportados”, ou serão propostas medidas para manter as pessoas de fora afastadas do local. O resultado, tanto num caso como noutro, é a sensação de insegurança: as pessoas “estranhas” serão percebidas como ameaçadoras, e ao mesmo tempo perceberão a hostilidade dirigidas a elas, reagindo àquela hostilidade. Seguindo este modelo de atuação que tenta negar a diversidade e a presença do “estranho”, restam três maneiras de conviver com a insegurança:
- “Deixar o perigo reinar absoluto e deixar que os infelizes que defrontarem com ele sofram as conseqüências”. Maneira como as regiões periféricas das cidades brasileiras, São Paulo em particular, têm sido tratadas historicamente pelas elites;
- “Refugiar-se em veículos”, estratégia que produz um círculo vicioso: carros-refúgio são mais visados, e à insegurança neles se responde com blindagens e apetrechos de segurança cada vez mais sofisticados, caros – e não necessariamente mais eficazes;
- “Cultivar a instituição do Território”, isto é, enclaves fechados e protegidos em si mesmos, com severas restrições à entrada de desconhecidos e com uma população homogeneizada e seleta. Estratégia de exclusão e privatização dos espaços, porém limitando sua atuação aos seus espaços confinados, sem capacidade de promover qualquer melhoria na segurança do entorno, do contexto mais geral.