Neste post eu compartilho um post maravilhoso do coletivo Baderna Midiática. Uma seleção de 10 músicas que são relacionadas intimamente a revoluções, protestos populares e manifestações de massa pela história - começa com a Turquia contemporânea e recua até o movimento ludista do princípio do século XIX!
Além da seleção espetacular (algumas canções, sem exagero, são de chorar de emoção), uma cuidadosa pesquisa histórica que proporciona descobertas incríveis - e algumas surpresas, como a canção "La Cucaracha". Sim, esta mesmo que você está pensando: ela é um hino da revolução zapatista!
Reproduzo, a seguir, o texto de apresentação do post. Em seguida, o link para que você mesmo possa se deliciar e emocionar com esse repertório.
Desde junho dezenas de músicas foram lembradas ou criadas por inspiração da experiência viva da tomada das ruas em todo o país. O Hino à Rua, feito pelo coletivo Baderna Midiática, é apenas uma dentre outras canções, como esta esta. É claro que também surgiram produções puramente mercadológicas, sem qualquer relação com o movimento que tomou as ruas, ou ainda aquelas que, bancadas pela grande mídia, procuram arrancar das manifestações seu espírito contestador. Mas existe hoje, como existiu em todos os momentos como este, a resistência do movimento popular contra os que querem impor suas bandeiras, seus símbolos e suas canções.
O que importa lembrar é que desde que há revoluções e insurreições populares as canções estão presentes a animar a luta. Uma mostra disso está na lista abaixo, na qual incluímos 10 músicas acompanhadas por uma breve apresentação e pela letra traduzida para o português. A seleção inclui apenas canções que são inseparáveis de momentos revolucionários ou insurrecionais, seja porque foram feitas em meio às batalhas, seja porque inspiraram os que lutaram. Começamos nosso percurso na Insurreição de Istambul, ocorrida pouco antes da tomada das ruas no Brasil, e o concluímos mais de 200 anos atrás. A lista poderia ser muito maior, pois ao que parece não há revolução que não se expresse musicalmente.
O Blog Baderna Midiática e este post podem ser acessados aqui.
Orientando um trabalho de graduação, tenho me dedicado a pensar algo que, na realidade, sempre foi uma questão inspiradora e desafiadora para mim, a ideia de "utopia". Quero partilhar algumas dessas ideias, mas para isso vou recorrer a uma "trilha sonora". Este texto é também, em grande parte, um tributo a esta que tem sido a minha trilha nos últimos meses.
Eu começo dizendo que entendo existirem dois tipos fundamentais de utopia, que vou chamar de o "modelo" e o "horizonte". O modelo é a utopia completa, formal, geralmente estática. O horizonte é o que, nas palavras de Eduardo Galeano, nos mantém caminhando. O modelo é uma representação acabada, o horizonte é permanentemente inconcluso. O modelo é visto do alto e de fora, o horizonte exige o percurso. Os dois são frutos da vontade e da imaginação humana, mas ao modelo é possível conceber a utopia de forma completamente intelectualizada; o horizonte é a utopia corporificada. Daí que a utopia-modelo, incapaz e inábil de trato com o diverso, tende a se aproximar do autoritarismo, enquanto a utopia-horizonte, forjada no movimento, chama ao contato e à partilha. Em suma: interessa-me a utopia-horizonte, e é dela que vou falar daqui para a frente.
Para isso, "convoco" a minha trilha sonora: o grupo português Deolinda. O poder da utopia-horizonte está presente em grande parte da obra deste grupo que tem sido minha paixão musical recente, a começar pela canção que inspira o título deste post:
A requintada urdidura das cordas tangidas pelos irmãos Luís José e Pedro da Silva Martins, sustentada pelo pulso de José Pedro Leitão no contrabaixo, forma a base musical sobre a qual passeia Ana Bacalhau, voz e vida das canções de Pedro Martins (a cantora diz que, na adolescência, sonhava em ser Janis Joplin. Na minha opinião, está mais próxima de outra musa dos sixties, Grace Slick, ao transitar com assombrosa desenvoltura entre a delicadeza tocante e o inconformismo contundente, a graça e a força). As canções de Deolinda realizam uma proeza que poucos conseguem: amplificar a vivência pessoal e o tom confessional em uma experiência coletiva, social - e, evitando o tom panfletário, fazer o caminho de volta: dar a essa experiência coletiva uma feição humana, concreta (o sambista Adoniran Barbosa, que inspirou o título deste blog, é outro exemplar desta rara espécie). Assim, por exemplo, a xenofobia, o racismo ou o ódio de classes são sintetizados no episódio da devolução de uma carteira perdida, em "Medo de mim".
A vontade, a tentativa (e por vezes o fracasso) em sair de um estado de conformismo são um tema recorrente na obra do grupo, desde o "Movimento Perpétuo Associativo", do seu disco inaugural.
O tema reaparece no disco mais recente, Mundo pequenino, que já foi chamado de "manifesto anti-inércia", com justiça. Em diversos matizes, o conformismo é compreendido mas rechaçado ("Há-de passar", "Gente Torta"). No pequeno conflito "conjugal" de "Pois foi", articulam-se as indignações com um relacionamento morno (ou morto) e com o país. Qual poderia ser a matéria-prima da utopia, sobretudo da utopia-horizonte, se não o inconformismo?
Mas não se trata de apenas diagnosticar um estado de letargia, porque a utopia é também um chamado à ação e ao envolvimento, como nos versos de "Concordância": "somos sujeitos, queremos verbos, bons complementos diretos, queremos frases afirmativas", na melhor tradição das canções de chamamento.
E é aqui que o horizonte se distancia do modelo, porque se demanda o envolvimento direto, pessoal e corporal, que é certamente mais trabalhoso, penoso, cansativo - porém mais honesto e democrático.
Pois essa dimensão da vida também é retratada pelo grupo: "Doidos" é uma ode ao corpo. "Ele diz que o corpo não é uma culpa / É sim uma festa que se quer na lua / (...) E em cada corpo cabe a eternidade". Porém, o que em mãos menos habilidosas poderia se tornar um mero exercício de sensualidade egocêntrica, aqui preserva a perspectiva que entende o homem como animal político: "Ele diz que o corpo não se privatiza", "Ele diz que o corpo não é trabalho / Não é um produto, nem é um fardo". Entre tantas grandes interpretações, Ana brilha nesta canção, ao brincar com a melodia e texto, rindo "é doido!" e sussurrando "doida". Pois a utopia-horizonte não é sisuda e não pode ser mal-humorada. "É doida"! É alegre (como diria Oswald de Andrade, a alegria é a prova dos nove...).
Resta falar da confiança expressa por "Seja agora". E aqui está, talvez, a beleza fundamental da utopia-horizonte: ela não se ressente da não realização completa, da sua própria imperfeição. O que nos move é uma confiança essencial, mais do que uma simples esperança. "Sei que vai ser porque tem de ser" é diferente de apenas dizer que "o dia virá": "se é pra acontecer, pois que seja agora". Sem precisar dizer, a canção aponta para um universo muito mais amplo, e assim mesmo continua sendo uma singela canção de amor: "Nós havemos de nos ver os dois / Ver no que isto dá / Ficar um pouco mais a conversar / Ter a eternidade para nós /Quem sabe jantar / Se tu quiseres, pode ser hoje". O que é melhor, e mais reconfortante (e isso pode tirar mais uns tantos de nós da letargia) é que nenhuma das possibilidades da canção exclui a outra. A própria mensagem talvez fosse menos compreensível se não fosse a melodia tão envolvente, tão feliz (arrisco dizer que é uma das canções mais felizes que ouvi nos últimos anos. E, para quem é um beatlemaníaco confesso, este não é um elogio banal!).
A uma geração que cresceu habituada a ouvir e aceitar que a mudança era impossível, que desde cedo foi ensinada que aceitar e se adaptar é o caminho de menor sofrimento, e que via essa impossibilidade expressa numa arte niilista (como a música dos anos 1990) e que parecia ver como única saída uma catástrofe apocalíptica (quantos filmes deste tipo foram produzidos na virada do século?), Deolinda mostra um outro caminho, que se vale do corpo, da alegria, que gera movimento, que brinca e que toma as ruas ("Sai de casa e vem comigo para a rua / vem, q'essa vida que tens / por mais vidas que tu ganhes / é a tua que mais perdes se não vens"):
A utopia-horizonte que se apresenta neste princípio de século XXI tem, antes de tudo, o grande mérito de enterrar de vez qualquer reivindicação imobilista de "fim da história" ou o que o valha. Se terá "sucesso"? Já teve, em nos fazer andar de novo - ou melhor, de nos manter caminhando. O dia que virá depois certamente não será o último, e talvez nem seja o melhor, mas será o seguinte.
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No final de julho, o grupo se apresentou aqui em São Paulo, e fui assisti-los na última noite (28 de julho - o dia das imagens mostradas no vídeo acima), num momento pessoalmente difícil. A experiência individual-coletiva que vivi naquela noite foi de um arrebatamento que não serei capaz de pôr em palavras agora. Mas posso dizer que seus desdobramentos não se encerram neste texto. E eu hei de agradecer pessoalmente a Deolinda por me chamar para a rua, de corpo inteiro, com alegria. E sei que vai ser.