Sempre me questionei sobre como agiria em momentos de “crise” política: se tivesse vivido nos anos 1960, que posicionamento eu teria diante do golpe militar? Será que eu me engajaria na luta armada, ingressaria na contracultura, faria uma oposição cuidadosa, ou simplesmente recuaria de medo? Essas questões reaparecem agora e não mais como uma especulação “histórica”, mas como um chamado. Isto porque, tudo indica, vivemos atualmente outro desses momentos.
Um dos desafios de momentos como esse é a dificuldade de olhar “o todo”, de se ter uma compreensão “global” do que está ocorrendo e o que está em jogo. Antes de abril de 1964, parte significativa da esquerda brasileira não apostava muitas fichas na iminência de um golpe de Estado. Sempre há aqueles que se afirmam capazes desta compreensão, mas eu não consigo confiar nisso. Para mim, trata-se de pensar em um modo de agir em meio a um “nevoeiro”. Nestas horas, já dizia Paulinho da Viola, parece ser prudente fazer como o velho marinheiro e levar o barco devagar.
Outro desafio é a polarização: num cenário dual, ou você é “claro” ou “escuro”. Ou é “direita” ou é “esquerda”. Ou é a favor ou contra a democracia. Parece-me incrível que velhos termos dicotômicos tenham reaparecido, especialmente as denominações “comunista” e “fascista”, e todas as suas derivações (“chavista”, “neoliberal”, “petralha”, “tucanalha”, etc.). O risco é de generalizações descabidas, de simplificações. Com minha veia de pesquisador, não consigo aceitar esquematismos e “preto & branco”. Interessam-me os matizes, os cinzas, e principalmente aquilo que “não se encaixa” nas interpretações fáceis. Isto, para mim, é o humano em essência. Se fosse possível imaginar uma sociedade perfeitamente equilibrada e igualitária, a contradição binária seria útil como um movimento dialético (tese x antítese > síntese), mas não é o caso: falamos de uma realidade em que o grau de poder é profundamente desigual, a possibilidade de uso da violência é assimétrica, e uma aposta na polarização pode nem sempre (mas não digo “nunca”) ser a escolha mais acertada.
Em momentos de crise como o nosso, a violência aparece ou é posta em evidência, e parece que somos impelidos a dizer qual violência é ou não aceitável. De um lado, tendo a achar sempre que a solução violenta não é a melhor, em nenhuma circunstância. Mas como responder a uma força repressora / opressora que julgamos injusta? Se não for possível sequer cogitar o uso da força como resposta, que alternativas restam? Resignação ou submissão, até onde posso ver. Há outra? Gostaria de conhecer sugestões. Uma expressão violenta é, necessariamente ilegítima? O que denominamos “violência”? Em que medida ela pode ser tolerada? Violência contra seres humanos e contra a vida, parece ser um consenso, é ilegítimo. Será que a ideia de violência se aplica também a “coisas” (a bens e propriedades)? E se for, quanto de violência seria aceito contra essas coisas – bens privados, bens públicos...
Em momentos como os atuais, o chamado à ação parece sempre urgente e coercitivo, e parece não haver tempo de parar para refletir. Mas talvez seja o mais importante: evidenciar as dúvidas, as lacunas. Elas é que abrem as portas para possíveis diálogos.
Este é um texto de mais dúvidas do que proposições. E quero encerrar mesmo desta forma, colocando ainda outra questão. Esse clima de crise parece trazer para o primeiro plano o impulso “destrutivo” humano – a violência, o ódio, a raiva. Onde fica o humor, o riso, a alegria? Será que não estamos disputando, fundamentalmente, uma noção de felicidade?