Desde que começou o noticiário e o debate em torno dos "rolezinhos"
nos shoppings, eu tenho pensado em escrever algo sobre esse fenômeno.
Mas ao me deparar com uma notícia de pessoas barradas em processo
seletivo para emprego sob acusação de "poluição visual e mau cheiro",
acabei lembrando de algumas passagens da minha dissertação de mestrado -
que este ano sairá em livro (aguardem!) - sobre a relação entre o
pensamento eugenista, no princípio do século XX, e a organização do
espaço urbano no Brasil, e em particular em São Paulo. Embora
normalmente a eugenia seja associada a um discurso médico, eu argumento
que também as práticas de organização do espaço urbano foram, com
frequência, imbuídas de uma ideologia segregacionista e racista (no
sentido de promover e defender práticas voltadas à "melhoria da raça", e
também no sentido mais usual de discriminação especificamente de
"negros" e "pardos"). A seguir, alguns excertos do livro, que podem
facilmente ser relacionados ao debate atual em torno dos "rolezinhos".
Com o crescimento das cidades, a reordenação dos espaços urbanos se fez uma necessidade para as elites, e o higienismo tomou para si tal tarefa [...] – mas também a eugenia, com a contundente imposição de normas severas para regulara vida social das populações. O eugenismo brasileiro está intimamente ligado a essa tendência ruralista encontrada em certos segmentos da elite nacional nas décadas de 1920 e 30. [...] Contudo, mais importante para este trabalho doque a apologia eugenista do agrarismo é de fato o conteúdo explicitamente antiurbano.[...] Atribuído em grande parte ao crescimento urbano, o crime recebeu dos baianos uma abordagem que incidia, na realidade, sobre o criminoso– numa busca de sua classificação e tipificação. Parte de uma disputa entre médicos e juristas sobre a primazia na definição do criminoso, os médicos o concebem como um doente que difere dos demais apenas pela natureza de sua doença.
Em diversas passagens, os autores eugenistas se mostram praticamente em consenso quanto ao caráter “disgênico” das cidades.Esse entendimento justificou, por parte dos adeptos da eugenia, uma notável adesão à campanha sanitarista então em voga. A atuação dos eugenistas nesse campo, entretanto, caracteriza-se especialmente pelo disciplinamento das massas trabalhadoras através da noção de“higiene mental”, mais do que uma atuação de fato sobre o espaço físico das cidades. É desta forma que se deve compreender a influência da eugenia no pensamento urbanístico da época: afixação e “justificação” de uma atitude aparentemente“antiurbana” entre os médicos. [...] Sob os preceitos da higiene mental foi criado, pelo dr. Antonio Carlos Pacheco e Silva, o Sanatório Pinel de Pirituba, para suprir a demanda proveniente do processo de urbanização e combater os “detritos da civilização” . [...] Muito interessante é a idéia, defendida por Pacheco e Silva, do papel potencialmente degenerador dos meios de comunicação:(...) o rádio com seu formidável poder de difusão de idéias, a facilidade de comunicações entre os mais afastados continentes advinda com a aviação aérea, os incalculáveis avanços das ciências físicas e naturais exerceram poderosa influência sobre o espírito humano, que não teve ainda o tempo necessário para sedimentar tamanha messe de conhecimento. Se daí resultaram grandes benefícios para a humanidade, se o homem moderno usufrui de maior conforto, resultante das novas descobertas, paga por outro lado maior tributo ao progresso e, dentre esses tributos, um dos mais caros é,sem dúvida, o número crescente, e por que não dizer assustador,dos desequilibrados do espírito. (apud COUTO, 1999:19, 1994:20-1)
A intensa urbanização do período fez emergir a questão da loucura, à medida que a maior concentração populacional acaba sendo interpretada como fonte potencial de“epidemias psíquicas”. Essa concepção é assim expressa por Renato Kehl:
A situação, sobretudo nas grandes coletividades, chega a tal gravidade que se admite, francamente, ‘ser impossível lutar vitoriosamente contra o viciado meio social’ (...) Ninguém poderá negar que a vida artificial e artificiosa em que vivemos arrasta inúmeras pessoas às doenças mentais. (...) a par do pauperismo e da ignorância, destaca-se outro elemento importante de degradação– o urbanismo hipertrofiado. (KEHL,1937:19, 76).
De forma semelhante se expressa o doutor Pacheco e Silva:
Freqüentemente, nas grandes aglomerações, os homens deixam-se conduzir por indivíduos tarados, portadores de estados psicopáticos,de idéias mórbidas de reivindicação, de delírios pleitistas, de idéias delirantes de perseguição. Tais tipos mórbidos são dotados de grande capacidade de proselitismo e são extremamente ativos na defesa de suas idéias mórbidas, razão por que exercem grande influência sobre as massas. (apud COUTO, 1994:25-6).
A declaração acima introduz também uma importante formulação do movimento de higiene mental eugenista: a admissão de fatores sociais, e sua vinculação a finalidades políticas, como elementos “disgênicos” – no caso, o ativista político passa a ser tratado como um paranóico. O mesmo era aplicado, com muita frequência, às feministas da época. As mulheres, concebidas pelos eugenistas como “sacerdotisas da Eugenia”, frágeis física e intelectualmente, deveriam se enquadrar em rígidos moldes comportamentais sob risco de terem sua cidadania esvaziada sob o diagnóstico de “enlouquecimento” – o feminismo era visto como uma ameaça à família.Seria considerado sintoma de loucura, além desses, qualquer “desviocomportamental” que pudesse representar ameaça à propriedade(avarícia, vício de jogos, prodigalidade).
Assegurar a ordem social, cada vez mais “ameaçada”pelo crescimento das cidades, foi um dos principais papéis atribuídos às instituições psiquiátricas, e a grande motivação para criação do Sanatório Pinel de Pirituba, que pudesse descentralizar o serviço psiquiátrico do Juqueri, já superlotadona década de 1920. O Sanatório de Pacheco e Silva deve ser entendido como uma resposta ao crescimento da cidade – e um exemplo do esforço eugênico para ordenação do espaço urbano –, para o qual contribuíram membros da elite social paulista, capitalistas,comerciantes e advogados, sem falar dos médicos.
As preocupações da saúde pública com a loucura e o crime, no entanto, representam apenas parte da herança deixada pela eugenia ao pensamento sobre as cidades. Outra parte é apresentada pela preocupação com questões de ordem demográfica – as quais fazem sentido apenas num contexto de alta concentraçãopopulacional, como nas cidades. Assim, não é de se estranhar que os eugenistas tenham representado um papel tão importante no desenvolvimento da estatística. Nela se baseava todo seu método: as comparações que permitem estabelecer os limiares entre o normale o anormal (ou ainda o subnormal, termo que persiste incólume no vocabulário técnico de descrição das condições de moradia) são estatísticas; também o são todos os instrumentos de projeção de tendências demográficas, com as quais se permite extrapolar, como retrato de uma população total, o resultado obtido em uma pequena amostra. Independente da validade ou não de tais extrapolações,o que se percebe é que os avanços da demografia estatística permitem olhar o urbano sem nele entrar – sem se misturar à multidão.
[...] Por fim, a ideologia antiurbana, que no Brasil se apoiou fortemente no eugenismo a partir das décadas iniciais do século XX,deveria ser doravante confrontada sempre com essa associação entre as condições de vida de um ambiente urbano e a degradação (moral)de suas populações. Basta lembrar que essa interpretação sempre parte de uma representação que coloca o grau “elevado”, o padrão de comparação, no modo de vida da elite.
Tal associação, sabe-se, não é criação da Eugenia.A novidade que esta traz é a formulação de instrumentos políticos e institucionais para combater a “degenerescência”, que não é senão o crescimento da população pobre em comparação com a rica.Esses instrumentos têm um princípio basilar: melhorar as condições de vida dos mais pobres significa incentivar sua “proliferação”;em compensação, o investimento em benefício das elites tem o papel“salutar” de promover a expansão do “melhor estoque humano”.Este princípio basilar é expressamente proposto por Francis Galton, e mesmo que a discussão sobre “melhoria da raça” tenha sido aparentemente superada, trata-se mais de uma mudança de termos e vocabulário do que de fato do conteúdo ideológico.
Assim, diversas formas de repressão violenta do“crime”, praticadas ainda hoje e com apoio de diversos setores da sociedade, carregam essa carga simbólica de “combate aos degenerados”. Encontram-se diversos resquícios de eugenismo na idéia de que a expulsão dos pobres irá melhorar um dado ambiente ao livrá-lo da criminalidade, ou da baderna – formulação repetida exaustivamente em tantos programas de “requalificação”,“revitalização” ou outros “re’s”. O argumento de que o urbanismo não teria sido influenciado diretamente pela eugenia é, portanto, frágil: em muitos casos, serviu como um instrumento eficaz de eugenização tácita do espaço urbano. De resto, quando se constata que, atualmente, “ricos vivem mais e pobres morrem maiscedo”, testemunha-se uma situação em que o projeto social de Francis Galton se encontra em pleno andamento.