28 de agosto de 2014

Annuntians

  1. Em outros momentos da nossa História, a luta social era travada fundamentalmente entre os opostos do marxismo clássico (capital x trabalho, ou burguesia x proletariado). A reivindicação de direitos era travada nos "mundos do trabalho": o direito à greve, às licenças remuneradas (férias, fins de semana, licença-maternidade e paternidade, etc), a remuneração justa, a jornada de trabalho, etc. Foi no contexto das lutas trabalhistas que a democracia brasileira foi resgatada, há pouco mais de trinta anos.
  2. Desde então, as lutas trabalhistas não desapareceram, mas cederam espaço a numerosas outras lutas: as questões raciais, de gênero, ambientalismo, multiculturalismo, para citar apenas alguns. Um contexto que, para muitos, descreve nossa "pós-modernidade": essa pluralidade de demandas tornam mais complicada a "velha" luta contra o capital, inclusive porque os movimentos às vezes se chocam: há sexismo entre militantes antirracismo, há causas "culturais" que se chocam com a "natureza" (não digo que sempre, algumas vezes isso acontece). E então diversos movimentos sociais emergiram com novas bandeiras, novas propostas, novas experiências sociais que não encontravam expressão no Estado e nas políticas públicas.
  3. Uma série dessas experiências ganhou espaço no primeiro governo Lula: com Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente, com Gilberto Gil no da Cultura, com as pastas dedicadas aos Direitos Humanos, à Mulher e à Igualdade Racial, na criação do Ministério das Cidades. Esse processo liberou energias por muito tempo represadas, e deflagrou-se um movimento, ainda inacabado, de ampliação da participação da população na discussão de políticas públicas e nas reivindicações de direitos. Muito mais do que alguns pessimistas (aos quais não me alinho) querem ver, optando pela leitura de que a inclusão social - via Bolsa Família, aumento do salário mínimo e do emprego - produziu apenas mais consumo.
  4. Lamentavelmente, esse processo foi parcialmente abortado em 2005. O chamado "mensalão" pôs na defensiva o projeto petista, que desde então foi sistematicamente desqualificado, confrontado e estigmatizado com pechas como a da corrupção, do "projeto de poder", sem falar de outras ideias mais delirantes, como o "golpe comunista" ou o "bolivarianismo". A tentativa de desestabilizar até cair aquele governo foi parcialmente fracassada, mas cobrou caro: desde então, a armadilha da "governabilidade" obrigou Lula e depois Dilma a acordos estarrecedores com os setores mais retrógrados da política nacional (especuladores, extremistas religiosos, latifundiários, etc.). O petismo não foi derrotado de fato, mas foi amordaçado e limitado, encurralado pela chantagem da "base aliada" (que, de fato, não tem compromisso algum com as bandeiras históricas do PT).
  5. Enquanto isso, nas várias arenas de lutas sociais, duelos eram travados em torno da orientação que tomariam certas bandeiras - como exemplo, o que significa, de fato, "sustentabilidade"? Nos meandros de demandas sociais legítimas, tem sido engendrado um conjunto de propostas "novas" - um capitalismo supostamente humanizado, colaborativo, respeitoso e sustentável... mas, essencialmente, o capitalismo. Enquanto isso, no topo da pirâmide social, o conservadorismo se expandindo, a oposição a qualquer projeto emancipatório ganhando força, a financeirização encampando definitivamente um projeto de exclusão/elitização e autoritarismo.
  6. Então, irrompe o junho de 2013, uma explosão de demandas sociais que pegam as classes dominantes (política e econômica) no contrapé, deixando-as atônitas e sem resposta. Imediatamente, inicia-se a corrida para se apropriar e conduzir uma força irrefreada, desarticulada e heterogênea. Discursos diversos iniciaram uma disputa por "traduzir" (conduzir) esses movimentos que demandavam desde as causas mais concretas (como o transporte) às mais niilistas ("contra a política"), passando pelas reivindicações de mais direitos sociais e pelas críticas aos vícios da política partidária e da democracia representativa.
  7. É este o quadro que se forma nas eleições que se aproximam. Dos candidatos com maiores chances de vitória, temos uma representante do governo atual, com seu projeto de "emancipação controlada", limitado e amesquinhado pela realpolitik; um representante do conservadorismo antipetista empedernido; e uma candidata que se afirma representar o "novo" e a negação de "tudo o que aí está" (qualquer semelhança com o palavreado do candidato Collor de Mello em 1989 não é mera coincidência), mas que efetivamente parece representar um grupo que se apoderou de algumas das bandeiras sociais contemporâneas e as oferece devidamente domesticadas na forma do "capitalismo supostamente humanizado, colaborativo, respeitoso e sustentável".
  8. Nesse quadro, eu não posso deixar de assumir um posicionamento. Recuso terminantemente o regresso, o projeto conservador/reacionário; recuso também o discurso "antipolítico", sedutor e vazio (ou, na verdade, cheio de intenções impublicáveis). Eu vi como a desilusão com a "Nova República" e o governo Sarney desembocou numa crítica generalizada aos "políticos" que resultou em Collor, nos Anões do Congresso, etc. Não apoio a corrupção, mas tampouco a vejo restrita ao setor público federal: a corrupção grassa nas relações promíscuas entre o governo estadual de São Paulo e empresas cartelizadas nos transportes, saneamento, mídia; a sonegação fiscal de grandes grupos de mídia não me ofende menos do que desvios de verbas públicas (essencialmente, é o mesmo por outros meios). A resposta messiânica é mais fácil de digerir e vender, ainda mais para as cabeças desavisadas ou preguiçosas. Eu não compro esse projeto. Com todos os defeitos e vícios, quero continuar seguindo adiante, reservando-me o direito de criticar o que considero ruim e pernicioso do governo atual (como a perigosíssima permissividade em relação à escalada de violência estatal contra a população e os movimentos sociais), mas ainda acreditando que a democracia só amadurece na prática, no contato e no atrito. Sem soluções mágicas, sem regressões autoritárias. Meu voto (mas não minha consciência) é de Dilma Rousseff.