- Em outros momentos da nossa História, a luta social era travada fundamentalmente entre os opostos do marxismo clássico (capital x trabalho, ou burguesia x proletariado). A reivindicação de direitos era travada nos "mundos do trabalho": o direito à greve, às licenças remuneradas (férias, fins de semana, licença-maternidade e paternidade, etc), a remuneração justa, a jornada de trabalho, etc. Foi no contexto das lutas trabalhistas que a democracia brasileira foi resgatada, há pouco mais de trinta anos.
- Desde então, as lutas trabalhistas não desapareceram, mas cederam espaço a numerosas outras lutas: as questões raciais, de gênero, ambientalismo, multiculturalismo, para citar apenas alguns. Um contexto que, para muitos, descreve nossa "pós-modernidade": essa pluralidade de demandas tornam mais complicada a "velha" luta contra o capital, inclusive porque os movimentos às vezes se chocam: há sexismo entre militantes antirracismo, há causas "culturais" que se chocam com a "natureza" (não digo que sempre, algumas vezes isso acontece). E então diversos movimentos sociais emergiram com novas bandeiras, novas propostas, novas experiências sociais que não encontravam expressão no Estado e nas políticas públicas.
- Uma série dessas experiências ganhou espaço no primeiro governo Lula: com Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente, com Gilberto Gil no da Cultura, com as pastas dedicadas aos Direitos Humanos, à Mulher e à Igualdade Racial, na criação do Ministério das Cidades. Esse processo liberou energias por muito tempo represadas, e deflagrou-se um movimento, ainda inacabado, de ampliação da participação da população na discussão de políticas públicas e nas reivindicações de direitos. Muito mais do que alguns pessimistas (aos quais não me alinho) querem ver, optando pela leitura de que a inclusão social - via Bolsa Família, aumento do salário mínimo e do emprego - produziu apenas mais consumo.
- Lamentavelmente, esse processo foi parcialmente abortado em 2005. O chamado "mensalão" pôs na defensiva o projeto petista, que desde então foi sistematicamente desqualificado, confrontado e estigmatizado com pechas como a da corrupção, do "projeto de poder", sem falar de outras ideias mais delirantes, como o "golpe comunista" ou o "bolivarianismo". A tentativa de desestabilizar até cair aquele governo foi parcialmente fracassada, mas cobrou caro: desde então, a armadilha da "governabilidade" obrigou Lula e depois Dilma a acordos estarrecedores com os setores mais retrógrados da política nacional (especuladores, extremistas religiosos, latifundiários, etc.). O petismo não foi derrotado de fato, mas foi amordaçado e limitado, encurralado pela chantagem da "base aliada" (que, de fato, não tem compromisso algum com as bandeiras históricas do PT).
- Enquanto isso, nas várias arenas de lutas sociais, duelos eram travados em torno da orientação que tomariam certas bandeiras - como exemplo, o que significa, de fato, "sustentabilidade"? Nos meandros de demandas sociais legítimas, tem sido engendrado um conjunto de propostas "novas" - um capitalismo supostamente humanizado, colaborativo, respeitoso e sustentável... mas, essencialmente, o capitalismo. Enquanto isso, no topo da pirâmide social, o conservadorismo se expandindo, a oposição a qualquer projeto emancipatório ganhando força, a financeirização encampando definitivamente um projeto de exclusão/elitização e autoritarismo.
- Então, irrompe o junho de 2013, uma explosão de demandas sociais que pegam as classes dominantes (política e econômica) no contrapé, deixando-as atônitas e sem resposta. Imediatamente, inicia-se a corrida para se apropriar e conduzir uma força irrefreada, desarticulada e heterogênea. Discursos diversos iniciaram uma disputa por "traduzir" (conduzir) esses movimentos que demandavam desde as causas mais concretas (como o transporte) às mais niilistas ("contra a política"), passando pelas reivindicações de mais direitos sociais e pelas críticas aos vícios da política partidária e da democracia representativa.
- É este o quadro que se forma nas eleições que se aproximam. Dos candidatos com maiores chances de vitória, temos uma representante do governo atual, com seu projeto de "emancipação controlada", limitado e amesquinhado pela realpolitik; um representante do conservadorismo antipetista empedernido; e uma candidata que se afirma representar o "novo" e a negação de "tudo o que aí está" (qualquer semelhança com o palavreado do candidato Collor de Mello em 1989 não é mera coincidência), mas que efetivamente parece representar um grupo que se apoderou de algumas das bandeiras sociais contemporâneas e as oferece devidamente domesticadas na forma do "capitalismo supostamente humanizado, colaborativo, respeitoso e sustentável".
- Nesse quadro, eu não posso deixar de assumir um posicionamento. Recuso terminantemente o regresso, o projeto conservador/reacionário; recuso também o discurso "antipolítico", sedutor e vazio (ou, na verdade, cheio de intenções impublicáveis). Eu vi como a desilusão com a "Nova República" e o governo Sarney desembocou numa crítica generalizada aos "políticos" que resultou em Collor, nos Anões do Congresso, etc. Não apoio a corrupção, mas tampouco a vejo restrita ao setor público federal: a corrupção grassa nas relações promíscuas entre o governo estadual de São Paulo e empresas cartelizadas nos transportes, saneamento, mídia; a sonegação fiscal de grandes grupos de mídia não me ofende menos do que desvios de verbas públicas (essencialmente, é o mesmo por outros meios). A resposta messiânica é mais fácil de digerir e vender, ainda mais para as cabeças desavisadas ou preguiçosas. Eu não compro esse projeto. Com todos os defeitos e vícios, quero continuar seguindo adiante, reservando-me o direito de criticar o que considero ruim e pernicioso do governo atual (como a perigosíssima permissividade em relação à escalada de violência estatal contra a população e os movimentos sociais), mas ainda acreditando que a democracia só amadurece na prática, no contato e no atrito. Sem soluções mágicas, sem regressões autoritárias. Meu voto (mas não minha consciência) é de Dilma Rousseff.
28 de agosto de 2014
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