Por essas ondas que às vezes batem nas redes sociais, esta semana eu me deparei com algumas postagens discutindo o conceito de "sapiosexual" - resumidamente, a atração sexual que se baseia na "inteligência" de uma pessoa. Dois casos me chamaram muita atenção: em um, a afirmação de que "sapiosexual é um conceito válido para homens brancos"; em outro, um texto que procura questionar a ideia de que "inteligência é um afrodisíaco". Como não sou pesquisador do assunto, não me vejo em condição de contestar qualquer um dos estudos que são citados nesses textos. Mas ao ler os dois, veio-me a sensação de que a contestação mira um alvo e acerta outro.
Em primeiro lugar, não tenho nenhum compromisso, portanto nenhum interesse, em defender a ideia de sapiosexualidade em si. Por mim, esse poderia passar como nada mais do que só mais um rótulo para tratar um aspecto muito particular da sexualidade. Nem seria necessário, portanto, ter um nome. A "atração pela inteligência" seria só mais uma faceta possível da atração sexual. Não me lembro de ter visto em lugar nenhum a afirmação de que é uma faceta "essencial" da atração, ou que seja dominante, ou até que seja superior ou inferior a qualquer outra forma. Mas então, qual a razão de se tentar desacreditar esse rótulo com tanta contundência?
Em outro lugar, vi que esse é um conceito razoavelmente aceito entre psicólogos e antropólogos: neste texto, aparece uma definição simples de que a inteligência é uma entre outros possíveis fatores de atração:
Por exemplo, algumas pessoas se sentem atraídas pelo físico, pelo dinheiro, ou pela diversão que a outra pessoa pode lhe proporcionar. Mas, longe de um corpo perfeito, uma posição econômica invejável, ou uma vida social desejável, há pessoas que são atraídas pela inteligência. Quem sente atração por essa qualidade no sexo oposto, é um “sapiosexual”.
Não vi nesse trecho nenhum juízo de valor ou "um jeito meio tonto de se sentir especial", como o "Lugar de Mulher" afirma. E fica claro que esse conceito leva em conta aspectos culturais, sociais, históricos, etc. Esses aspectos devem ser considerados em qualquer um dos estudos mencionados. Confiando nas informações apresentadas pela Mari, devo aceitar que o estudo da FGV conclua que "quanto maior o nível de instrução, maior a probabilidade de estar solteira". Ela mesma levanta duas questões fundamentais: uma, de que o estudo é um meio de empoderamento, que faz da solteirice uma opção; outra, que inteligência pode ou não estar associado a instrução. Neste último caso, mesmo que associássemos o "sapio" não a inteligência mas a "intelectualidade", ainda haveria o caso de pessoas cuja formação e desenvolvimento intelectual não passa pela formação acadêmica, e sim por envolvimento direto com as artes, por exemplo. Mas não creio que seja o ponto central aqui.
O segundo estudo citado é mais revelador da posição defendida por Mari e Sueli Feliziani: conforme um estudo do IBGE, é muito mais fácil uma mulher com alta instrução estar solteira do que um homem com a mesma instrução, ou do que uma mulher menos instruída. Está claro aí - e eu concordo inteiramente com isso - que um traço estrutural da sociedade brasileira (o machismo) é evidenciado aqui. E o terceiro estudo citado mostra que a tendência não se restringe ao Brasil, mas à América Latina de forma geral: quando se casa, grande parte das mulheres latino-americanas mais escolarizadas tende a fazê-lo com homens menos educados.
Para piorar, o estudo citado por Sueli Feliziani, segundo o qual o aumento de escolaridade das mulheres negras é proporcional à "chance de ficar sozinha". Neste caso, ao machismo se soma outro elemento estrutural da sociedade brasileira, o racismo. Não tenho nenhuma razão nem autoridade para questionar essa conclusão. No entanto, todos esses estudos, na minha visão, colocam em xeque o racismo e o machismo da sociedade brasileira, e nisso acertam primorosamente, mas não necessariamente o conceito de sapiosexualidade.
Primeiro, porque quem fala dessa forma de atração já diz logo de cara que é mais frequente em mulheres. Assim, não se confirmaria a suposição de que a inteligência seria um fator determinante da atratividade de uma mulher, como Mari bem observou e ironizou em seu texto. Segundo, porque admitir que esta é uma forma de atratividade possível não significa afirmar que é fundamental, principal ou predominante.
Amy Farrah Fowler e Sheldon Cooper, personagens do seriado "The Big Bang Theory": A mulher sapiosexual e o nerd branco assexuado? |
Enfim, desacreditar a sapiosexualidade não contribui em nada para o combate ao machismo ou ao racismo, na minha opinião. Ainda que seja verdade que "sapiosexual" é um conceito válido para homens brancos (e espero que, por isso, ninguém ache que estou advogando em causa própria), essa constatação deveria ser o ponto de partida, não de chegada: por que é assim? Por que aos homens parece ser tão esdrúxula a ideia de se sentir atraído pela inteligência de uma mulher e não, por exemplo, por seus "atributos físicos"? Porque basicamente o machismo também determina que homens "sensíveis" são "afeminados" (e tantos outros sinônimos mais grosseiros); por que no modelo "machão" latinoamericano a sexualidade é sempre vinculada ao "instinto", ao carnal, às forças naturais e incontroláveis do animal, e não a um complexo que inclui também os fatores culturais, a formação, a história, os costumes, os valores, etc.
Eu estou inteiramente de acordo com a afirmação de que "ser mulher e pensar continua sendo um ato de resistência", mas sou obrigado a observar - da posição de homem branco - que pensar continua sendo um ato de resistência em geral. Não quero com isso minimizar a opressão machista e racista ao dizer isso. Não me imputem, por favor, a ideia de que faço aqui uma defesa das abominações cognitivas/éticas/políticas de quem fala de "vitimismo", "racismo invertido" e imbecilidades do tipo. Quero apenas dizer que, junto com o racismo e o machismo caminha também uma tendência de desqualificação do intelecto, especialmente no que diz respeito à sexualidade. Não há um dia que a mídia não reforce essa ideia: personagens fictícios nunca são atraentes por serem inteligentes: no máximo, são atraentes apesar de inteligentes, e no mais das vezes são apenas sujeitos esquisitos, excêntricos, perturbados e problemáticos. Sim, ainda mais se forem mulheres. Sim, AINDA MAIS se também forem negras.
Talvez a noção de sapiosexualidade coloque em questão apenas mais uma possibilidade ao já tão horrivelmente vasto repertório de opressões que nossa sociedade é capaz de engendrar. Longe de mim querer medir qual delas é melhor ou pior. Apenas quero admitir que seja sim possível que a inteligência seja mais um fator de atração, que se pare de achar que pessoas cultas ou intelectualizadas são necessariamente assexuadas ou "mal-resolvidas", que se supere a concepção de sexualidade como algo intrínseco apenas à dimensão dos sentidos, do corpo e das emoções primárias. Como em tudo o mais que envolve o humano, a sexualidade é natureza e cultura, biológica e social.