Licença para uma postagem bem longa... Hoje vi um texto ao qual senti necessidade de responder. O autor é ninguém menos que meu pai. Como ele fez do texto uma declaração pública, também vou responder em público. Nenhuma das duas opiniões é diretamente voltada à do outro, mas é claro que há grandes discordâncias entre as duas opiniões – eu, a favor de Dilma, e ele de Serra. Também acho que nenhum deles ache que vai, com o texto, mudar a opinião de ninguém. Mas quero aproveitar a chance de comentar o texto do meu pai porque, sendo ele como uma pessoa que respeito e admiro tanto, não vou cair na tentação fácil de apenas desqualificar seus argumentos, e muito menos ele próprio.
Esta é uma questão que discuti com minha esposa há pouquíssimo tempo, e é absolutamente oportuno que este texto tenha proporcionado a chance de explicitar alguns pontos de vista divergentes entre nós. E a divergência não pode ser reduzida a uma questão de caráter, muito menos de moral. Quando nos deparamos com um texto de uma corrente política diversa da nossa, é tentador tentar desqualificar o autor como um “reacionário” ou um “radical”, um “desonesto” ou um “ingênuo”, e por aí em diante. Não quero cair nessa tentação. Talvez eu nunca seja capaz de convencer meu pai – nem parentes, nem alguns colegas – sobre minhas opiniões, mas da mesma forma que trato o texto e o autor com respeito, quero que quem ler o que vou escrever encare o meu texto com a mesma disposição de dialogar.
O fato de haver tão grande disparidade entre a minha opinião e a de meu pai é, sem dúvida, um grande mérito dele. Se foi capaz de permitir que eu desenvolvesse minhas próprias opiniões, formular minhas próprias ideias e me sentir capaz de defendê-las mesmo em oposição às dele mesmo, eu só posso lhe agradecer. Agradeço discordando, mas debatendo, argumentando e respeitando. Talvez um dia nossos políticos e os que militam por eles, de ambos os lados, talvez sejam capazes disso também.
Os textos em azul são do texto original do meu pai, e em vermelho os meus comentários. Tratei de comentar apenas os pontos de discordância, então quem quiser ler o original, está no blog dele:
Mas ela representa a continuidade de um governo que, embora tenha feito avanços nas políticas sociais, imbuiu-se de tal arrogância que nega todos os avanços anteriores e nos quais se baseou.
Arrogância... no mínimo, teríamos que admitir arrogância dos dois lados, então. Está fresca na minha lembrança o episódio em que FHC disse que o povo brasileiro era “caipira”, ou quando, indagado sobre suas políticas neoliberais, classificou seus críticos de “neobobos”. Recentemente, José Serra desqualificou uma indagação de Heródoto Barbeiro sobre os pedágios nas estradas paulistas, denominando-a “trololó petista”. Ou mesmo quando classificam as políticas sociais como “populistas”, palavra mágica para desqualificar qualquer movimento para fora do elitismo que quase sempre caracterizou a ação do Estado no Brasil. Essa postura de desqualificação do interlocutor é, infelizmente, uma postura muito comum entre tucanos: recusam-se ao debate, porque consideram os interlocutores ignorantes. Não vejo nisso um exemplo muito bom de postura democrática, ou “republicana”, como alguns gostam de chamar.
Quanto a negar os avanços, há dois pontos aqui: um diz respeito à política monetária, que em grande parte foi mesmo uma continuidade em muitos pontos daquilo que foi feito antes, e não há como negar. Isso era um compromisso assumido já em 2002, com a “Carta aos Brasileiros”, que teve o papel de acalmar os ânimos exaltados do mercado financeiro à época, que temia choques heterodoxos à moda do Collor. Por outro lado, ainda na área econômica, o governo representou uma profunda modificação em relação ao governo anterior, assumindo um papel muito mais diretivo e ativo na economia. Isso tem muito a ver com o que os economistas costumam associar a uma inspiração “keynesiana”, ou seja: o Estado investindo e gastando como uma forma de promover a circulação de dinheiro e dinamizar a economia. Isto difere enormemente do governo anterior – que basicamente se ocupou em cortar gastos e “enxugar” o Estado – e não há como dizer que houve mera continuidade. Na crise de 2008 essa diferença ficou ainda mais evidente, com o governo promovendo investimentos e gastos (essa palavra que é quase o diabo para os neoliberais) numa política que os economistas denominam de “política anticíclica” (simplesmente isso, ninguém inventou a roda nesse episódio, o que foi feito é perfeitamente amparado pelas mais elementares teorias econômicas), que apenas difere do receituário neoliberal.
Como os avanços na área social são reconhecidos, vale apenas um comentário: é comum dizer que o Bolsa Família é mera continuidade dos programas do governo anterior, e disso também discordo, em dois pontos: primeiro, o aumento de escala foi tão significativo que foi necessário desenvolver uma estrutura de distribuição de recursos que os programas anteriores simplesmente não seriam capazes de prover; segundo, há uma diferença de concepção: enquanto se desagregava a verba em diversas “bolsas” (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, etc), o governo direcionava e impunha aos beneficiários a maneira com que deveriam aplicar o dinheiro recebido. Com o Bolsa Família, os beneficiários ganharam autonomia (no sentido literal da palavra: autodeterminação) para decidir o que fazer com o dinheiro. Que tenham ocorrido casos de aplicação equivocada (sob nosso ponto de vista), é o preço a pagar pela autonomia. O governo, ainda assim, optou por não tutelar o “povo” e assumir que ele é consciente o suficiente para saber o que fazer com o dinheiro de que dispõe. Essa opção, aliás, é tão diametralmente oposta a qualquer definição de “populismo”, que só pode usá-la ainda quem não entendeu a política, não entende o que é populismo ou simplesmente não quer se dar ao trabalho de examinar a realidade. Ou as três coisas, que é o que eu acredito que os tucanos façam.
A negação sistemática, feita por Lula, de tudo o que veio antes o elevou a índices de popularidade inéditos. Mas, fruto de uma mente autoritária que reverencia todos os ditadores que conheceu, ela se baseia também na repetitiva afirmação de inverdades.
Vou comentar esse “autoritarismo” do Lula adiante. Quanto a reverenciar “todos os ditadores que conheceu”, acho que a afirmação precisa ser um pouco matizada. Talvez se queira referir a ditadores de orientação socialista. Sem entrar no mérito da questão dos regimes socialistas, que exigiriam um texto à parte, lembro de certa ocasião o Lula ter debatido com um líder político de um país do leste europeu recém-democratizado: esse líder acusava os regimes socialistas de autoritários e celebrava a abertura, ao que Lula chamou a atenção que, no caso da América Latina, alguns dos mais bárbaros regimes autoritários instaurados contavam com amplo e ativo apoio dos países “democráticos” (leia-se capitalistas). Talvez se lembre também de alguma declaração favorável do Lula ao regime militar brasileiro, mas também neste caso há um contexto a considerar: o comentário dizia respeito não ao autoritarismo, mas à atuação do Estado como protagonista econômico e sua capacidade de planejamento. Esses argumentos poderiam ser estendidos longamente, mas esse comentário serve para ao menos matizar o comentário, que eu também considero inverídico. De resto, a “repetitiva afirmação de inverdades” também é recurso da oposição, quando insiste em classificar o governo de “populista” quando os fatos dizem o contrário, quando insistiu à exaustão a tal tese do “terceiro mandato” por mais que o Lula a desmentisse, etc.
Lula dá-se ainda o direito de zombar da Justiça, fazendo escárnio publicamente até de decisões do Supremo Tribunal, e nada acontece. Só a sua verdade vale.
Minha opinião é que o que há aqui é um embate essencialmente político. Acho que faz parte do direito de expressão dizer que se discorda, e em quê. Se houve “escárnio” ao STF, não vejo exemplos mais edificantes na oposição. Se o STF merece respeito, também o merece um Presidente da República, seja quem for. Neste sentido, os oposicionistas (e algumas figuras truculentas como Arthur Virgílio, ACM Neto, ou outros, já disseram as maiores barbaridades sobre o Lula, sem nenhum constrangimento à “liturgia do cargo”). Assim, acho que é mais salutar do que prejudicial que as posições divergentes sejam explicitadas. Que eu me lembre, mesmo que tenha feito “escárnio” de decisões do Supremo, não houve nenhum movimento de “retaliação”, por exemplo. Acho que isso seria muito mais preocupante do que meras declarações públicas.
Hábil orador, distorce o sentido das palavras para lhes atribuir um significado conveniente, que venha em socorro de seus companheiros pegos em atividades ilícitas. Com ele, caixa-dois deixa de ser crime, vira tradição e nada mais acontece. Corruptos e corruptores tornam-se apenas aloprados e nada mais acontece.
Nisso não vejo diferença com nenhum outro governante anterior. Inclusive em relação ao “nada acontece”... lembremos que a expressão “dar em pizza” é muito anterior ao governo Lula. Muito se tem lembrado, ultimamente, a figura do Geraldo Brindeiro, o “Engavetador Geral da República”. Muita coisa tem sido denunciada, muita coisa é investigada. Quanto a punições, essas dependem muito mais da Justiça, cujas imperfeições e vícios não têm relação com o governo, são bem anteriores a este, e também beneficiaram muitos dos atuais opositores.
Mas ele próprio corrompeu o sindicalismo ao torná-lo servil ao seu projeto de poder.
Nem todo o sindicalismo se submeteu, mas há com certeza aqueles sindicatos e centrais que o apoiam, como já o apoiavam quando não era governante. Mas existe um grande debate no meio sindical a respeito de uma “cooptação” dos movimentos sociais (os sindicatos como apenas um caso) pelo governo, e está longe de ser um consenso entre eles que esta situação tenha sido benéfica para eles.
Há cerca de um ano ou mais, Lula “premiou” os grandes grupos sindicalistas com 100 milhões de reais a fundo perdido, sem a contrapartida da prestação de contas. Agradecidos, hoje os grandes líderes sindicais sobem ao palanque com Lula e Dilma.
Talvez isso tenha acontecido mesmo (não sou ingênuo de achar que essas coisas não ocorram, apenas duvido que sejam exclusividade deste governo). Ainda assim, reduzir a isto o apoio de líderes sindicais ao Lula e à Dilma é injusto e equivocado. Porque existe uma afinidade histórica entre o PT e os sindicatos, mesmo antes de haver qualquer “prêmio” de governos. O PT surgiu dos movimentos sindicais, das lutas operárias, e nunca foi segredo que a CUT é apoiadora do PT, desde muito antes de o partido alcançar qualquer cargo diretivo. E o PT no governo, ao contrário, tem sido alvo de muitas críticas de movimentos que o apoiaram – e se ainda o apoiam, isto se deve não apenas ao dinheiro, mas a uma oposição ao projeto adversário. Reduzir toda a questão apenas ao dinheiro é uma atitude despolitizadora.
Minha memória se recusa a esquecer a pergunta que Lech Walesa, o líder do movimento polonês Solidariedade, fez um dia a Lula: “Mas vocês, no Brasil, misturam sindicato com partido político?” Misturam, sim, e com o dinheiro das mensalidades e anuidades dos sindicalizados, não importando a que partido estes pertençam. Isso é um erro essencial, gravíssimo, mas o País já se acostumou a essa distorção ética. Minha contribuição mensal e anual, por exemplo, pagou parte de recente manifestação do Sindicato dos Jornalistas em prol de Dilma.
Nisto talvez resida uma crítica ao sindicalismo de forma geral. Mas antes do PT, havia o mesmo problema com a relação entre os sindicatos e o PCB, o “Partidão”. Há razões históricas para essa confusão de sindicato com partido, e talvez a explicação esteja na amarra getulista dos sindicatos ao Estado. E há mesmo um problema de partidarização dos sindicatos, como também do movimento estudantil ou outros. Isto, porém, não deve ser tomado como pretexto para invalidar os sindicatos enquanto tais. Até porque, em grande parte, esses sindicatos acabaram se tornando espaços restritos de interesses partidários também porque os que se opunham a isso, em lugar de lutar para mudar a situação, resolveram se retirar deles e da participação direta. Legalmente, os sindicatos são representantes da classe profissional a que se referem. Se isto não é o que acontece na prática, a melhor maneira de mudar a situação é participando de suas decisões, não se excluindo delas.
E contra o quê se manifestava o sindicato? Contra o golpismo midiático! É muita ironia.
Posso contar alguns casos de jornalistas que, trabalhando em veículos da chamada “grande imprensa”, foram desautorizados e “censurados” internamente por escreverem matérias que iam contra o interesse dos veículos. Em casos como a questão das cotas, ou dos livros didáticos (para não falar das eleições), alguns jornais e revistas simplesmente abriram mão de um debate às claras, amplo e com divergências de opiniões. Em lugar disso, passaram a fazer verdadeira campanha em defesa de uma posição que, em momento algum, abriu qualquer espaço para o contraditório. Mesmo que o termo “golpista” possa parecer exagerado, há uma reivindicação legítima em relação a uma parcialidade desmedida – e, pior, disfarçada de “isenção” – por parte da mídia, ou dos principais veículos. E essa não é apenas uma avaliação de setores apoiadores do governo. Até mesmo alguns ombudsmen dos jornais observaram isso (antes, é claro, de o cargo ter sido extinto por vários desses veículos)...
O fato é que a censura corre solta no governo Lula, com tendência a piorar! O Grupo Estado, que nos tempos da ditadura publicava versos de Camões ou receitas culinárias para assinalar os trechos censurados, hoje sofre a censura imposta pelo clã Sarney, cujos desmandos impingem ao seu Estado o pior IDH do País. Mas Sarney apoia Lula e coincidentemente a censura não acaba. O próprio Lula tentou extraditar o jornalista Larry Rohter porque não gostou de ser mostrado como alcoólatra por este. A censura aos meios de comunicação é uma ideia fixa do atual governo.
Não consigo entender como se pode falar de censura quando há revistas como Veja, Época, ou jornais como a Folha, o Estadão, o Globo, em que tantos articulistas, editorialistas, e até matérias regulares (que alguns poderiam supor que não são os espaços opinativos desses veículos) podem livremente criticar, desqualificar e até ridicularizar abertamente o governo, o partido governista, e até (ou principalmente) o presidente. E até onde eu sei o governo nunca designou uma pessoa ou um órgão para avaliar previamente o que é publicado para autorizar ou não. Para mim, é isso o que caracteriza censura. Do outro lado, tenho visto e ouvido frequentemente de pessoas que trabalham nesses jornais e revistas, que qualquer opinião minimamente divergente daquela que o editor ou o dono do veículo defende é previamente descartada, ou imediatamente punida. Maria Rita Kehl que o diga. O caso da “censura” ao Estadão é uma situação desagradável, mas que formalmente ocorreu dentro das regras de um Estado de direito. A “censura” é o resultado de uma decisão judicial, que pode ser revertida, e não da intervenção direta na redação, como foi no regime militar. Da parte do Estadão, não reconhecer essa diferença fundamental é nada menos que desonesto. O caso do jornalista americano é, de fato, vergonhoso, mas não consigo ver neste caso um exemplo de uma tendência geral, ou de uma “idéia fixa”. Essa “ideia fixa” é geralmente relacionada ao projeto do Conselho Nacional de Jornalismo, e a crítica de que se trata de uma tentativa de “controle” partiu tanto da direita quanto da esquerda. Por isso, merece ser discutida com cuidado. Eu chamo a atenção para o fato de que se trata de um projeto de lei, de uma proposta de regulamentação da constituição... não se pretendeu criar um instrumento como esse por meio de decreto ou de “ato institucional”, por exemplo. Então, nos debates, o direito ao contraditório dos que discordam está assegurada – tanto é assim que o projeto não foi aprovado! Condena-se o governo por propor a discussão, e por ter uma posição a respeito, mas não há como ver autoritarismo em nenhum dos procedimentos que, até agora, orientaram a discussão deste projeto. Se é bom ou ruim, é uma discussão que, infelizmente, aqui não tenho espaço para debater. Mas o que se tem feito é radicalizar o debate para “liberdade absoluta” versus “controle total”, enquanto o que eu acho é que pode e deve haver um meio termo.
Ah, sim, um comentário sobre o clã Sarney. Não morro de orgulho de ver que ele apoia o governo Lula, mas também não me iludo em achar que exista uma ampla convergência programática e ideológica entre ambos – o apoio é circunstancial. Tem muito a ver com o arranjo partidário que governa atualmente, no qual o PMDB é também governo. Mas é um apoio que vai só “até a página dez”... imaginem o que Sarney faria, dono que é de tantos veículos de comunicação no Maranhão, se a discussão do CNJ ou a regulamentação da Constituição a respeito dos meios de comunicação (e a limitação à oligopolização da mídia, por exemplo) avançassem. Alguém duvida da ferocidade com que ele assumiria a oposição ao PT? Na verdade, o lamentável é que “coronéis” como Sarney e tantos outros, tenham permanecido no poder por tantos anos, atravessando governos e governos e se mantido quase intocáveis. Pois Sarney também não apoiou o governo FHC? Isso diz muito mais sobre o fracasso das “forças progressivas” no país em constituir uma sociedade mais democrática, e muito também sobre o êxito dessas “oligarquias” em se perpetuarem no poder em suas regiões, a despeito de qualquer mudança governamental. Como o “Leopardo” de Lampedusa, a nossa elite sabe se dividir e estar sempre dos “dois lados” para que sempre continue ganhando, e sendo capaz de sempre de seguir a regra do “às vezes é preciso mudar para que tudo continue igual”. Ter permitido que essa situação tenha se mantido é um erro ou uma limitação do governo petista, por certo, mas também o foi do governo FHC, e não tenho motivos para acreditar que também não vá ser no caso de um governo Serra – já que tantos desses oligarcas integram o DEM que o apoia.
O aparelhamento do Estado tornou-se uma realidade, apoderando-se dos cargos públicos e se achando no direito de distribuí-los aos companheiros, não importando se têm competência ou não.
Outra questão que pode ser analisada de forma mais cuidadosa. Primeiro, é muito comum que um partido, ao assumir um governo, queira colocar em cargos de confiança pessoas alinhadas com suas próprias propostas e concepções. Até aqui, acho que ninguém há de ver problemas, e assim é feito em qualquer governo. Segundo, talvez exista uma tentativa de equivale essa política a um projeto “leninista” ou “stalinista” de tomada do Estado. O alerta é válido e há que prestar atenção a isso, mas não há elementos para algo além disso. Terceiro, quando se coloca o “não importando se têm competência ou não”, também se abstém de avaliar de fato a competência de quem foi lá “colocado”. Pelo simples fato de estar no governo em “cargo de confiança” já desqualifica quem lá está. No entanto, nas diversas áreas que acompanho profissionalmente, o que vejo é estão lá algumas das pessoas mais credenciadas para as políticas em cada setor – exemplos não faltam: no Ministério das Cidades, do Meio Ambiente... Ao mesmo tempo, muito se tem investido na expansão do funcionalismo público por meio de... concursos públicos! O que pode ser mais alinhado com a idéia de “competência” do que alguém ser aprovado para órgãos públicos após passar em concurso? Mais uma vez, falar de “aparelhamento” é uma generalização descuidada.
Competência, afinal, é um conceito demonizado, porque implica direitos e deveres. Uma só coisa interessa: direitos. Deveres dão trabalho!
Acho que muito diferente de demonizado, o conceito é problematizado. “Competência”, em primeiro lugar, não é um conceito neutro, como parece. Existem pessoas igualmente qualificadas que defendem concepções de políticas públicas muito distintas. Dá para dizer que alguma delas é mais competente? Por outro lado, competência não implica exatamente “direitos e deveres”, mas responsabilidade. Quando se diz que algo “compete” a alguém, significa que esta pessoa se responsabiliza por aquilo, e não vejo neste governo uma atitude generalizada de fugir à responsabilidade, como é sugerido. Mas há uma ideia de fundo nesta crítica, que associa a atividade política ao descompromisso com o “trabalho”. Isto, infelizmente, é uma imagem muito difundida: políticos, em geral, “não trabalham”. Sindicalistas, lideranças sociais e afins “não trabalham”. Mas duvido que qualquer um desses não saiba o que são “direitos” e “deveres” em sua atividade. Pode haver, mas não acho que este seja algo que possa ser discutido em termos genéricos, e quando se atribui uma qualidade dessas a um governo todo, ou a um partido ou a uma corrente política, essa generalização ganha ares de preconceito...
Surpreende ver como até Chico Buarque caiu na demagogia fácil ao afirmar que “este governo não fala fino diante de Washington, nem fala grosso diante da Bolívia e do Paraguai”. Isso é discurso de porta de fábrica.
É muito mais do que isso. Demagogia é um termo pejorativo, depreciativo, para uma política externa marcante. Em momentos cruciais, quando tantos exigiam do governo que “falasse grosso” com a Bolívia (quando esta nacionalizou a produção de gás no país, o que era uma antiga demanda dos movimentos sociais que, com Evo Morales, chegaram ao governo) ou quando o Paraguai resolveu reivindicar maiores direitos em relação à usina de Itaipu. Oposicionistas exaltados só faltavam exigir do governo que declarasse guerra a esses países, e o governo teve a sensatez de propor negociação. Com relação a Washington, o posicionamento é mais sutil, pois não houve afrontas diretas (como Cuba e Venezuela, sempre associados a Lula, adotaram), mas também não há subserviência. Há algo reconhecido muito frequentemente como “demagogia”, que é o fato de Lula insistir em se pronunciar em português. Acho isso muito positivo, porque este é o idioma do país que ele representa. Aos olhos de alguns, isso está relacionado à sua “ignorância” (afinal, desde Rui Barbosa, acostumamo-nos a ter orgulho de nossos representantes serem doutos nos idiomas da “civilização” e dos países “avançados”). Aos olhos do resto do mundo, e quem está lá fora comprova isso, o que aparece é apenas uma disposição de um presidente de se exprimir por sua língua nativa e se valer dos sempre presentes intérpretes e tradutores para ser entendido pelo interlocutor. Com isso, Lula torna fato um diálogo entre iguais, entre nações que, formalmente, são equivalentes no direito internacional. Que há uma assimetria de poder, ninguém nega, mas essa assimetria simplesmente não é naturalizada.
A arrogância de Lula vem de um sentimento de inferioridade que ele nunca superou e que inconscientemente projeta nos outros, chamados vagamente de “eles”. Só não consegue esconder o incômodo que lhe causa ouvir falar em FHC. Chega a saltar da cadeira, nessa hora. Valha-nos Freud!
Atitudes são quase sempre carregadas de múltiplos significados, e o “sentimento de inferioridade” é talvez um deles, não o único nem necessariamente o principal. O perigo de uma “psicologização” tal é que, de um lado, se impute ao Lula uma tendência inerente, imutável (“é um traço de caráter”), e de outro lado, descontextualiza e retira da história pessoal de um indivíduo, o Lula que não é apenas o ocupante de um cargo mas alguém que tem uma trajetória. Se há mesmo um sentimento de inferioridade, ela não deve ser usada para desautorizar nem para desculpar uma pessoa e seus atos. Não acho que se deva usar esse sentimento para caracterizá-lo como um “coitado” nem como um “mau-caráter”. Por outro lado, como comentei antes, existe a arrogância que vem de um sentimento de inferioridade e uma arrogância que vem de uma prepotência esnobe. Entre uma e outra, fico com a primeira. O sentimento de inferioridade, por outro lado, tem um componente de “classe” (por odiosa que a palavra pareça para alguns). A história de Lula ainda é a do migrante pobre, nordestino. Que isto tenha sido usado como arma de marketing, é uma coisa, mas que há um substrato real nessa imagem, também há dúvida. Lula tem sido sempre acusado de se valer dessa “imagem” para se justificar em tudo e “não trabalhar”, mas essa acusação sempre desconsidera o trabalho que foi organizar metalúrgicos, liderar uma greve contra o regime militar, fundar um partido de “esquerda” e fazê-lo o maior partido de “esquerda” do mundo. Essas conquistas são frequentemente menosprezadas pelo simples fato de não corresponderem a um ideário que se acredita ser mais adequado ou mais edificante como exemplo de realização individual. Não se encaixa no “self-made man”. Mas quanto a humanidade deve a pessoas que, além ou até em lugar de projetos individuais de vida, trabalhou em nome de coletividades! Que em determinado momento o projeto coletivo tenha dado lugar a um projeto pessoal, é questão a se discutir (eu não concordo), mas que há uma história maior do que apenas isso, certamente há. Sobre FHC: é nítido também o desconforto que ele demonstra ao ser comparado com Lula. Supondo-se que não há, neste caso, um “sentimento de inferioridade”, será que se pode falar em “inveja”? Afinal, e já que é para falar de psicologia, vaidoso como ele é, não deve ser nada fácil ser colocado em pé de igualdade (ou até em desvantagem) na comparação com Lula.
Das bobagens que li ultimamente, a maior delas dizia “Se Dilma ganhar, haverá golpe”. Talvez fosse um dilmista aterrorizado.
Conheço o autor da frase. Embora ache que não dá para afirmar algo assim com tanta convicção, também não acho que seja meramente uma bobagem. O que o “dilmista aterrorizado” (na verdade, está muito longe disso) quer alertar é que há pessoas por trás da oposição a Dilma, a Lula, ao PT, que não medem as conseqüências na defesa de seus interesses. Que não sejam todos, ainda assim a situação de polarização que esta eleição demonstrou é preocupante. Principalmente pelo grau de agressividade que os dois lados têm utilizado para desqualificar um ao outro. Embora eu ache que a agressão que Lula e Dilma têm sofrido é imensamente maior. “Cachaceiro”, “analfabeto”, e agora “assassina”, “terrorista”. Quem lê as páginas de debates pela internet deve se assustar com declarações antipetistas de um nível de intolerância e preconceito que beiram, ou até mergulham fundo, num fascismo de botar medo. E essa atitude também me aterroriza.
Se Serra ou Dilma ganhar, não importa, o Brasil continuará crescendo. No segundo caso, porém, pelo que mostram os fatos atuais, progressivamente irão sendo calados os meios de comunicação. Haverá então uma única voz e verdade: a versão oficial.
Mais uma vez, não vejo “fatos atuais” que comprovem que qualquer meio de comunicação esteja ou vá ser calado. E, de qualquer forma, uma coisa que está clara é que cada vez mais o debate se desloca desses meios de comunicação unidirecionais (jornais, revistas, TV) para estes, como a internet e as redes sociais, que são essencialmente colaborativas, de ida e volta. A produção de conteúdos está cada vez mais descentralizada, e isso aponta para uma sociedade cada vez mais – e não menos – democrática, onde a “voz oficial” é, cada vez mais apenas mais uma voz.
Felizmente, se Serra ou Dilma ganhar, não importa, sempre haverá gente lutando por um país melhor e mais justo, sempre haverá gente trabalhando – e muito! – pelo bem da coletividade. Isso independe da vontade pessoal de qualquer um dos dois.
Concordo, e acrescento: não creio que nenhum dos dois candidatos, ao menos pessoalmente, deseje algo diferente disso.
É bom lembrar que o ganhador levará apenas pouco mais da metade dos votos.
O que, mais uma vez, garante que não será possível haver uma única voz e verdade.