15 de outubro de 2014

Visão de mundo, é isso que verdadeiramente está em debate

(Atendendo ao pedido de alguns amigos, publico aqui uma declaração dada no Facebook sobre a minha escolha nesta eleição.)
Eu já deixei bem claro meu posicionamento político, e garanto que tenho toneladas de argumentos para defendê-lo. Mas sinto que os apoiadores do candidato de oposição não querem argumentos, mas apenas recusar, renegar e desqualificar a visão de mundo e o projeto de sociedade que eu defendo. Vou tentar sintetizar o que eu penso em tópicos. E acreditem, por trás de cada frase tem anos de reflexão e experiência. Para quem quiser argumentar, as portas estão abertas. Quem quiser continuar gritando ódio, poupe meu tempo.
  1. A escolha é: inclusão social x manutenção (ou aumento) da desigualdade
  2. Isso implica aumentar a renda dos e a proteção aos mais pobres, mesmo que para isso for preciso ir na contramão das "regras de mercado"
  3. Eu quero o fortalecimento da diplomacia sul-sul, e não a volta da subserviência às potências hegemônicas (cada vez mais em crise)
  4. Corrupção? Eu acredito no controle social, na transparência e na investigação e julgamento como as melhores respostas contra a corrupção. O problema é social, político. Não de moral individual.
  5. Sou contra toda forma de justiçamento, da pena de morte, das chacinas e da violência policial contra quem quer que seja ("bandido" só existe depois de provado, julgado e condenado. Antes disso, no máximo, suspeito).
  6. Sou a favor da ampliação dos direitos civis, e não de sua restrição. Pobres, analfabetos, homossexuais, etc, têm direitos pelo simples fato de existirem, e suas escolhas não nos cabe julgar.
  7. Sou a favor dos serviços públicos, de sua manutenção e até ampliação. Mais funcionários públicos significa equipes técnicas mais estruturadas, melhor atendimento, maior alcance das políticas públicas. Pode-se (deve-se) cobrar eficiência, mas a redução do Estado numa nação do porte do Brasil significa mais problemas do que soluções.
  8. Não acredito em "salvadores da pátria". Meu voto não é um cheque em branco. Sei em quem votei e voto, e acompanho diariamente o que os meus escolhidos estão fazendo. Sei cobrar deles os compromissos que assumiram, e vou denunciar tudo o que não for cumprido, e tudo aquilo de que discordo.
  9. Defendo uma democracia efetiva: ampliação de direitos, direito de manifestação e direito a oposição. Quero poder protestar sem medo de repressão policial, porque isso é meu direito.
  10. Não quero, em hipótese alguma, a volta do regime militar.
  11. Não, o Brasil não está se tornando, e não vai se tornar, nenhuma "ditadura" comunista. E o simples fato de haver quem afirme isso livremente é a melhor prova disso.
  12. Eu contesto quem tem opiniões contrárias à minha sim. Quero que argumentem. Isso não é censura. Isso é responsabilidade pelo que se diz.
  13. Acredito sim que a maior parte dos eleitores do Aécio pode até não ser homofóbico, racista, reacionário, elitista ou fascista. Mas, sinto dizer, quem apoia a candidatura peessedebista terá todos esses ao seu lado. Eu prefiro me manter afastado de tudo isso.

28 de agosto de 2014

Annuntians

  1. Em outros momentos da nossa História, a luta social era travada fundamentalmente entre os opostos do marxismo clássico (capital x trabalho, ou burguesia x proletariado). A reivindicação de direitos era travada nos "mundos do trabalho": o direito à greve, às licenças remuneradas (férias, fins de semana, licença-maternidade e paternidade, etc), a remuneração justa, a jornada de trabalho, etc. Foi no contexto das lutas trabalhistas que a democracia brasileira foi resgatada, há pouco mais de trinta anos.
  2. Desde então, as lutas trabalhistas não desapareceram, mas cederam espaço a numerosas outras lutas: as questões raciais, de gênero, ambientalismo, multiculturalismo, para citar apenas alguns. Um contexto que, para muitos, descreve nossa "pós-modernidade": essa pluralidade de demandas tornam mais complicada a "velha" luta contra o capital, inclusive porque os movimentos às vezes se chocam: há sexismo entre militantes antirracismo, há causas "culturais" que se chocam com a "natureza" (não digo que sempre, algumas vezes isso acontece). E então diversos movimentos sociais emergiram com novas bandeiras, novas propostas, novas experiências sociais que não encontravam expressão no Estado e nas políticas públicas.
  3. Uma série dessas experiências ganhou espaço no primeiro governo Lula: com Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente, com Gilberto Gil no da Cultura, com as pastas dedicadas aos Direitos Humanos, à Mulher e à Igualdade Racial, na criação do Ministério das Cidades. Esse processo liberou energias por muito tempo represadas, e deflagrou-se um movimento, ainda inacabado, de ampliação da participação da população na discussão de políticas públicas e nas reivindicações de direitos. Muito mais do que alguns pessimistas (aos quais não me alinho) querem ver, optando pela leitura de que a inclusão social - via Bolsa Família, aumento do salário mínimo e do emprego - produziu apenas mais consumo.
  4. Lamentavelmente, esse processo foi parcialmente abortado em 2005. O chamado "mensalão" pôs na defensiva o projeto petista, que desde então foi sistematicamente desqualificado, confrontado e estigmatizado com pechas como a da corrupção, do "projeto de poder", sem falar de outras ideias mais delirantes, como o "golpe comunista" ou o "bolivarianismo". A tentativa de desestabilizar até cair aquele governo foi parcialmente fracassada, mas cobrou caro: desde então, a armadilha da "governabilidade" obrigou Lula e depois Dilma a acordos estarrecedores com os setores mais retrógrados da política nacional (especuladores, extremistas religiosos, latifundiários, etc.). O petismo não foi derrotado de fato, mas foi amordaçado e limitado, encurralado pela chantagem da "base aliada" (que, de fato, não tem compromisso algum com as bandeiras históricas do PT).
  5. Enquanto isso, nas várias arenas de lutas sociais, duelos eram travados em torno da orientação que tomariam certas bandeiras - como exemplo, o que significa, de fato, "sustentabilidade"? Nos meandros de demandas sociais legítimas, tem sido engendrado um conjunto de propostas "novas" - um capitalismo supostamente humanizado, colaborativo, respeitoso e sustentável... mas, essencialmente, o capitalismo. Enquanto isso, no topo da pirâmide social, o conservadorismo se expandindo, a oposição a qualquer projeto emancipatório ganhando força, a financeirização encampando definitivamente um projeto de exclusão/elitização e autoritarismo.
  6. Então, irrompe o junho de 2013, uma explosão de demandas sociais que pegam as classes dominantes (política e econômica) no contrapé, deixando-as atônitas e sem resposta. Imediatamente, inicia-se a corrida para se apropriar e conduzir uma força irrefreada, desarticulada e heterogênea. Discursos diversos iniciaram uma disputa por "traduzir" (conduzir) esses movimentos que demandavam desde as causas mais concretas (como o transporte) às mais niilistas ("contra a política"), passando pelas reivindicações de mais direitos sociais e pelas críticas aos vícios da política partidária e da democracia representativa.
  7. É este o quadro que se forma nas eleições que se aproximam. Dos candidatos com maiores chances de vitória, temos uma representante do governo atual, com seu projeto de "emancipação controlada", limitado e amesquinhado pela realpolitik; um representante do conservadorismo antipetista empedernido; e uma candidata que se afirma representar o "novo" e a negação de "tudo o que aí está" (qualquer semelhança com o palavreado do candidato Collor de Mello em 1989 não é mera coincidência), mas que efetivamente parece representar um grupo que se apoderou de algumas das bandeiras sociais contemporâneas e as oferece devidamente domesticadas na forma do "capitalismo supostamente humanizado, colaborativo, respeitoso e sustentável".
  8. Nesse quadro, eu não posso deixar de assumir um posicionamento. Recuso terminantemente o regresso, o projeto conservador/reacionário; recuso também o discurso "antipolítico", sedutor e vazio (ou, na verdade, cheio de intenções impublicáveis). Eu vi como a desilusão com a "Nova República" e o governo Sarney desembocou numa crítica generalizada aos "políticos" que resultou em Collor, nos Anões do Congresso, etc. Não apoio a corrupção, mas tampouco a vejo restrita ao setor público federal: a corrupção grassa nas relações promíscuas entre o governo estadual de São Paulo e empresas cartelizadas nos transportes, saneamento, mídia; a sonegação fiscal de grandes grupos de mídia não me ofende menos do que desvios de verbas públicas (essencialmente, é o mesmo por outros meios). A resposta messiânica é mais fácil de digerir e vender, ainda mais para as cabeças desavisadas ou preguiçosas. Eu não compro esse projeto. Com todos os defeitos e vícios, quero continuar seguindo adiante, reservando-me o direito de criticar o que considero ruim e pernicioso do governo atual (como a perigosíssima permissividade em relação à escalada de violência estatal contra a população e os movimentos sociais), mas ainda acreditando que a democracia só amadurece na prática, no contato e no atrito. Sem soluções mágicas, sem regressões autoritárias. Meu voto (mas não minha consciência) é de Dilma Rousseff.

13 de julho de 2014

Futebol e música em tempo de crises

A campanha da seleção brasileira nesta Copa do Mundo trouxe à baila uma série de comentários sobre uma "crise" do futebol brasileiro, chamamentos à sua reforma (ou revolução, conforme prefiram alguns), necessidade de se "reinventar" ou se "redescobrir". A sensação geral que perpassa todos esses comentários é a de que algo se perdeu e precisa ser resgatado. Um traço da "personalidade" brasileira, de sua identidade. Para uns, o erro esteve em abandonar o futebol que era o "típico" futebol brasileiro: o toque, o drible, a ginga e o... improviso. Outros, na direção contrária, apontam como erro a recusa do futebol brasileiro em se "modernizar", segundo os parâmetros do futebol... quem adivinha?... europeu (é claro). A esses últimos não posso deixar de lembrar que foi justamente o clamor pela "modernização" (após quatro copas de "fracassos" entre 1970 e 1986, quando tivemos excelentes times mas não conseguimos "ganhar a Copa") que nos levou à famigerada "era Dunga" de Sebastião Lazzaroni... É toda uma geração de atletas, treinadores, cartolas e jornalistas que vem dizendo, há décadas, que o futebol brasileiro precisa se profissionalizar, modernizar. Que o jogador precisa, antes de tudo, de condicionamento físico e tático, etc etc etc.
Curiosamente, a mesma sensação de perda ou descaracterização tem rondado muito do que se fala sobre a nossa música. Assim como no futebol, onde lamentamos a ausência de Pelés, Garrinchas, Zicos ou quetais, também suspiramos ante a ausência atual de Jobins, Chicos, Caetanos... A impressão de "decadência" ou (para usar um termo ainda mais forte) "degeneração" da nossa música é provada pela preponderância dos pagodes mela-cueca, do "sertanejo universitário" ou o que quer que seja. Aqui também a discussão se dá em torno da questão da "identidade nacional": estaríamos abandonando nossas "raízes" em favor de uma sonoridade "globalizada", ou a realidade é que a modernização é um processo irrefreável?
A única resposta que me ocorre, num caso como no outro, é a que tenho dado repetidamente nos últimos tempos: não generalizemos. Para entender o que ocorre com o futebol e com a música no Brasil, é preciso ser capaz, primeiramente, de circunscrever a questão, para depois olhar para o lado de fora. Estamos falando de um futebol e de uma música que se tornaram imensas e poderosas atividades econômicas. São parte de uma indústria de entretenimento ou de esportes altamente profissionalizados, globalizados (e, quando digo isso, estou dizendo também que integram um circuito altamente financeirizado, especulativo e competitivo segundo os ditames neoliberais que regem essa tal "globalização"). São atividades em que o fim não é o esporte ou a arte em si, mas o lucro que geram. Mas, nem de longe, essa música e esse futebol correspondem à totalidade do que se faz no Brasil.
Que se diga então que as atividades econômicas baseadas na cultura ou no esporte brasileiros precisariam se reformular e transformar. Perguntemos: para quê, e para quem? Ganhamos duas Copas do Mundo desde Lazzaroni até hoje (ou seja, em plena globalização), e temos jogadores frequentemente listados entre os mais valiosos do mundo, ou entre os maiores jogadores do mundo (talvez, circunstancialmente, estejamos numa fase de vacas magras... mas já passamos por isso antes). Do mesmo jeito, artistas brasileiros têm participado ativamente de circuitos internacionalizados da música. O negócio vai bem, sim, obrigado. Quem lucra com ele continua lucrando.
Algo me diz, porém, que o futebol e a música que gostaríamos mesmo de reconhecer como nossa está longe das "arenas" ou dos programas de televisão. Posso dizer pela música, que conheço um pouco melhor: exatamente agora, há uma geração absolutamente fantástica de compositores, intérpretes, instrumentistas, que não devem nada às gerações anteriores em termos de inventividade, exploração, domínio dos repertórios tradicionais e capacidade de reelaboração dessa mesma tradição. Que talvez esperem apenas o momento de sua "descoberta", se é que esperam. Na verdade, para muitos deles, isso não faz diferença: integrar o circuito da "indústria musical" é visto muitas vezes como limitante - ainda que, talvez, muitos desejassem poder viver de sua arte.
No futebol, onde parece se generalizar a ideia de que tudo não passa de um grande negócio (com as constantes suspeitas de manipulação e ingerências de toda espécie), nada me impede de imaginar que exista ainda, em outros campos, talvez nas ruas, e longe das "escolinhas de futebol", da visão dos "olheiros" e do alcance dos "empresários". Um futebol que, como a música, é primeiramente praticado pelo prazer de jogar. Ali talvez encontremos ainda os nossos talentos, o improviso, o jogo coletivo, o toque de bola. Ali também poderemos encontrar quem pouco se importe com a "profissionalização" e não faça nenhuma questão de ser um novo astro. Embora, também, talvez haja quem desejasse poder viver do que sabe fazer de melhor.
Não é preciso medir o sucesso da nossa música ou do nosso futebol pelo título na Copa do Mundo ou pelo vencedor de "Ídolos". E, principalmente, não é preciso medir nosso valor como "povo" ou "nação" usando réguas que não são nossas. Não há porque duvidar que voltemos a ser campeões do mundo, não há porque achar que nunca mais teremos outros Chicos e Tons. Mas estaremos simplesmente errando o foco se quisermos orientar nossas artes maiores para a obtenção de "resultados", segundo uma lógica estritamente empresarial. Vamos brincar de novo.

11 de julho de 2014

Da seleção ao Brasil Genérico


Mal acabou a partida em que a seleção brasileira de futebol foi vencida pela alemã pelo inacreditável placar de 7 x 1, já começaram a surgir os textos que, junto com a demanda justa por uma grande transformação do futebol brasileiro (mais organização, mais profissionalismo, mais preparação e planejamento, etc.) trouxe também uma série de interpretações que tentavam justificar o fracasso futebolístico a partir de uma tentativa de tornar a seleção um emblema ou síntese de toda a nação ou de seu povo.
Há uma longa tradição de ensaios interpretativos da nação, na qual às vezes elementos supostamente simples (como o carnaval) são tomados como um ponto de interseção de múltiplos traços do "caráter nacional". Geralmente, ensaios filosóficos, antropológicos, sociológicos, que procuram extrair de um indício (no caso, a partida de futebol) uma possível confluência de vários outros processos ou caracteres que poderiam ser elucidados a partir desse evento sintético. Evidentemente, poucos deles (se é que algum) têm o mesmo sucesso, e sequer a mesma perspicácia ou profundidade de um Sérgio Buarque de Hollanda. Na maioria esmagadora dos casos, recorre-se a concepções já bastante desgastadas da "identidade nacional" ou a estereótipos, preconceitos, generalizações rasas. Muito eficientes pra alimentar uma boa discussão de boteco, mas que pouco acrescentaria a um debate mais sério sobre o país.
Isso porque, basicamente, os termos da discussão se amparam em noções genéricas tão vagas quanto discutíveis: para ficar em um só exemplo, afinal quem é "o" brasileiro? Quem pode afirmar que "o brasileiro" não é racional, não planeja, é "malandro", trata tudo na base do "improviso"? Pergunto ao leitor: em que medida você mesmo se identifica com essa descrição? Com muito boa (ou má) vontade, talvez você admita um traço de malandragem aqui, um pouco de improviso acolá, mas tenho certeza de que, no geral, sua vida é pautada por decisões, e várias delas são profundamente refletidas.
O problema é tão velho quanto os estereótipos que alimentam esse tipo de discussão: o "brasileiro" ou o "Brasil", genericamente falando, é uma abstração de quem o vê de cima ou de fora. Esses raramente se dão ao trabalho de compreender situações e contextos reais, específicos em seu tempo e espaço. E raramente enxergam na "malandragem" uma resposta, dentre outras possíveis, a uma opressão violentíssima e historicamente constante contra a população. Ou a suposta "falta de planejamento" a um descaso com o interesse público da parte de quem, seja como for, sairá sempre ganhando. Essas generalizações, quase invariavelmente, assumem um tom depreciativo, e essa depreciação incide invariavelmente sobre aqueles com os quais o narrador se recusa a se identificar. Estão, portanto, sempre abaixo. Curiosamente, esses são os textos que, supostamente, estariam fazendo o grande favor de "politizar" uma atividade que, se tratada nos estritos limites de sua própria realização (o futebol), conduziriam invariavelmente à alienação.
Eu, thompsoniano assumido, recuso essas generalizações idealistas e opto sempre pelo caminho (ainda que mais trabalhoso e menos confortante) de examinar o "povo brasileiro" em casos concretos, em situações reais, em meio a conflitos e tensões, com recursos limitados e pouca "visão do todo" (que, na realidade, nenhum sujeito histórico realmente tem), com possibilidades e escolhas limitadas, e entender em meio a isso tudo que respostas são dadas aos problemas e por quê. É fato que não consigo, na maioria das vezes, depreender uma "regra" que me permita julgar uma nação e um povo como se fosse uma unidade indistinta e uniforme. Mas consigo preservar alguma prudência para observar quem está falando, de que posição (e a que distância), sobre quem, e julgar se desejo me alinhar a ele - e, quase sempre, prefiro não.
Ganho, ainda, outro benefício: rio e choro junto com todos os outros, sem julgá-los. E assisto ao futebol me divertindo ou sofrendo com eles (como foi neste jogo Brasil x Alemanha) sem arrogância nem pedantismo.

6 de abril de 2014

Classe média, os impostos e o medo do poço sem fundo

Tem sido quase lugar comum criticar as atitudes e valores da classe média brasileira - individualismo, conservadorismo, etc. Sempre me lembro, nessas horas, de um ensinamento da minha orientadora do doutorado, quando ainda era um estudante em iniciação científica: sociologicamente não há "classe média" - o mais correto seria usar a expressão no plural: "classes médias". Por que isso faz diferença? Porque talvez o maior erro dessas críticas seja o de colocar inúmeros grupos em uma categoria única, desconsiderando suas diferenças, seus conflitos, até mesmo suas contradições e incoerências. Há enormes diferenças entre o executivo e o professor da rede pública, entre o jornalista e o médico, entre o arquiteto e o mestre de obras. E diferenças também no interior desses grupos (e, com essas diferenças, não quero dizer que "cada um é cada um", mas sim que coletivamente cada um deles é também heterogêneo, com diferentes orientações políticas, culturais, etc, antes ainda das diferenças da história pessoal de cada integrante).

Uma classe?

Essa denominação no singular estaria muito mais ligada a um método de estratificação socioeconômica, baseada no critério de renda (ganho monetário), mas será possível estabelecer tão diretamente assim uma correlação entre o que se ganha e aquilo em que se acredita, ou em como se age? Pensei nisso mais uma vez recentemente, ao me deparar com minha declaração anual de renda. Eu, que até ano passado fazia jus a restituições, subitamente me vi alçado à condição de pagador (ou seja, ganhei mais do que o imposto retido na fonte supunha), e de uma quantia que me assustou: o equivalente a um mês de salários. Primeiramente, discuto o meu caso: um mês de salário é até pouco diante dos valores que se divulgam normalmente, como os 27,5% sobre a renda mensal no extrato mais elevado (ou seja, não um mas 3 meses de salário) ou da carga tributária no país, que chega perto de 40% (quatro meses). Um mês só? Estou no lucro!
Mas aí a segunda pergunta: quem pode dizer que um mês de ganhos não faz falta? Se eu tivesse que pagar de uma vez só, simplesmente não saberia de onde tirar esse dinheiro. Bem, saberia, mas a sensação é de que não se está disposto a pagar. Antes de começar a gritaria contra o pagamento, entretanto, eu fiz alguns exercícios de relativização que valem a pena. Convido o leitor a pensar em sua própria situação a partir desse meu exemplo.

Quem paga a conta?

Primeira coisa: o valor do imposto é injusto? Eu, e acredito que boa parte dessas classes médias, tem como história de família a "ascensão pelo trabalho" (não apenas meu, mas de meus pais, meus avós, e por aí vai), e a lembrança de todas as dificuldades para alcançar esse novo patamar ainda estão frescas na lembrança (sempre há alguém na família que faz questão de lembrar isso). Por essa perspectiva, pagar imposto parece uma "punição" pelo próprio sucesso. Isso só faz sentido se aceitamos a premissa de que o "sucesso" se deve unicamente ao esforço individual, o que eu não concordo (não vou entrar nessa discussão agora, mas estou a meio termo entre essa ideia individualista e a de que o esforço individual não tem influência nenhuma). Se, por outro lado, reconhecemos que nosso sucesso é resultado de uma conjunção de fatores que incluem uma boa parcela de outros esforços individuais, há nessa tributação alguma forma de recompensa ou retribuição. Por outro lado, há também que considerar o princípio moral do Homem Aranha, segundo o qual "grandes poderes trazem grandes responsabilidades". E eu custei para acreditar ao me dar conta de que eu, que a duras penas pago todas as contas e me mantenho sem grandes luxos ou supérfluos (e muitas vezes acabo o mês no vermelho), faço parte da porção de maior renda da população brasileira (possivelmente não o topo da pirâmide, mas o extrato "B"). 
O problema é que o fosso abaixo de mim parece sem fundo. Vi essa mesma discussão quando foi aprovada a "PEC das Domésticas": no fim, pessoas se queixando de ter que arcar com os custos de uma família extra (a da empregada). Acho que há quem consiga sim, mas não são todos, e nem é a maior parte da "classe média". Se considerarmos o nível de vida da população mais pobre, é possível que até possamos, mas não deveria ser esse o critério. Como eu disse, o poço parece não ter fundo, e há famílias que se sustentam com o salário mínimo (nem sei como). Deveria ser assim? Acho que não. A mesma ideia parece se aplicar ao imposto de renda: é como ter que tirar do próprio bolso e pagar um salário a alguém.

Pagar pra quê?

Segunda pergunta: imposto para que(m)? Ao Estado, é a resposta óbvia. E aí duas queixas comuns: de que o Estado não retorna proporcionalmente à população aquilo que arrecada; e de que a arrecadação "sustenta a corrupção (ou os corruptos)". Aí vale ponderar um pouco as coisas. Primeiro, o retorno dos impostos pode ser relativizado, e meu amigo Carlos Kikuti fez isso magistralmente em seu texto "Brincando com números" (veja aqui) - a conclusão é que parece haver uma relação entre o aumento de carga tributária e o desenvolvimento de um país: "desenvolvimento custa dinheiro em impostos" e "a única coisa que se pode dizer do Brasil é que ele poderia cobrar ainda mais impostos" (volto já à questão: cobrar de quem?). Por outro lado, as notícias que mostram o Brasil reduzindo a desigualdade há mais de uma década graças, em parte, às políticas de distribuição de renda (Bolsa Família, entre outros) mostra que há sim um retorno do Estado para a população, mas numa dimensão mais ampla: não um retorno individual a quem pagou, mas um retorno à população como um todo. Quem pagou mais está, indiretamente, financiando a redução da desigualdade no país. Não era pra se orgulhar disso? Aí a questão da corrupção. Bom, não quero perder tempo com julgamentos morais, mas posso dizer que, se por um lado é verdade que a corrupção (o desvio de verbas públicas, e a - adivinhem? - sonegação fiscal) prejudicam muito a capacidade do Estado de implantar políticas públicas de desenvolvimento e redução de desigualdades. Mas também é verdade que a escolha do Estado em privilegiar o atendimento a interesses privados específicos (como os bancos, conforme mostra esse artigo aqui) atrapalha muito mais. E, bem, precisamos reconhecer que o Estado está melhorando seu retorno à população a despeito da corrupção. Corrupção esta que não existe no Brasil há apenas dez anos (como alguns parecem acreditar) e, mesmo que tenha piorado (o que eu acho muito discutível), foi acompanhada de importantes melhoras.
Na realidade, creio que a queixa contra o pagamento de impostos deva ser entendida em duas dimensões: a da sensação de insegurança que acomete essas classes médias, e uma sensação de que, uma vez que a desigualdade é tão acentuada no país, uma renda razoável parece autorizar os institutos de pesquisa de mercado, as políticas públicas e outros igualem perfis de renda muito discrepantes: de fato, acho que há entre eu e um banqueiro uma diferença tão grande quanto a que me separa do miserável lá na base da pirâmide. E aí temos duas coisas a consertar, talvez.

Insegurança como regra de vida

A sensação de insegurança a que me refiro não se refere apenas à violência, ainda que a inclua. Muito do medo da violência que a "classe média" tem se refere aos crimes contra o patrimônio - aquele mesmo "conquistado com esforço e com méritos próprios, etc". Não por acaso, a cobrança de impostos é frequentemente descrita como um "roubo", e o mesmo valendo para a corrupção. Mas há outro aspecto da insegurança que considero mais decisivo: o medo de que, por circunstâncias diversas, o trabalhador médio se veja privado de sua renda (a de seu trabalho) e seja lançado ao poço - aquele que não tem fundo. Não é um medo infundado nem injustificado. E quem escala o poço sabe que não quer voltar lá pra baixo. Pois se nossa sociedade não consegue garantir que, no caso de perda do trabalho/emprego, a pessoa não perca suas garantias básicas de sobrevivência, então temos um problema real. A solução pra isso requer que o poço tenha fundo, e que o fundo seja trazido para mais perto da superfície. Isso inclui combater a corrupção em suas várias formas (e não só aquela que os jornais mostram, mas principalmente a que eles omitem), a qualificação dos serviços públicos (o aumento do uso desses serviços pelas classes médias pode contribuir muito para isso, ao quebrar o estigma de que serviço público é "para pobre"), uma política de garantia de renda mais consistente (seguro-desemprego e afins) - e, neste caso, para isto é preciso quebrar o mito e o preconceito de que essas garantias estimulariam a "vagabundagem".

Valores

A redução da desigualdade, enfim, é a única maneira de assegurar que o esforço de combater a miséria e proporcionar essa segurança descrita acima seja uma responsabilidade compartilhada pela maior parte da população. Como está hoje, uma pequena fração apenas tem condições de assumir essa responsabilidade (e, sim, eu e você fazemos parte dela). A "pirâmide" da renda precisa adquirir a forma de um balão: muito maior no centro do que na base: isso proporcionaria um ganho de escala que possibilitaria atenuar o peso dos tributos sobre a parcela média. E, claro, se queremos fazer justiça tributária, há que estabelecer o princípio de que quem ganha mais paga mais. Nosso sistema atual tem, entre outras perversidades, a característica de funcionar ao contrário disso.
Para que a nossa sociedade consiga superar suas dificuldades, é preciso que cada um de nós se veja não apenas como um indivíduo isolado (e em disputa com todos os demais) e assumir um projeto coletivo - que, no fim das contas, beneficiará a todos. Há nisso elementos de generosidade e de solidariedade, que normalmente são tidos apenas como qualidades pessoais - mas, diferentemente da ambição, ela se expressa para além da pessoa e alcança o outro. Nossas classes médias precisam urgentemente cultivar em seus membros esses valores: generosidade para com os desiguais, e solidariedade para com os iguais. No primeiro caso, reconhecer que o esforço empreendido resultará numa melhoria para todos; e no segundo, uma disposição de articular com seus semelhantes um conjunto de pautas comuns a serem demandadas do Estado e das elites: basicamente, a melhoria e consolidação dos serviços públicos que garantam a segurança de vida para todos - e também para essas classes médias.
Esses valores de responsabilidade, generosidade e solidariedade me tranquilizam um pouco em relação ao pagamento de impostos: se eu posso eu pago sim, e vou ficar feliz de ver que, também nesse aspecto, eu estou "fazendo a minha parte". E se eu consigo perceber que isso é um investimento de longo prazo que se reverte também a meu favor, fazendo com que eu tenha menos medos - de um momento de instabilidade profissional, de um criminoso ou mesmo de andar na rua com algum bem adquirido - posso me convencer de que o preço está bem pago.

24 de fevereiro de 2014

Do rim aos direitos, um ensaio sobre a dor

Faz uma semana que passei por uma cirurgia para retirada de cálculo renal - a famigerada e infame "pedra no rim". A operação foi relativamente simples, mas a convalescença deu mais trabalho do que eu esperava: dois dias internado, mais o resto da semana com um "Duplo J", um cateter entre o rim e a bexiga que incomodava muito, doía, sangrava... Tudo isso coroando um processo que se arrastava havia dois meses, desde a primeira crise, no começo de dezembro de 2013.
Numa das conversas com enfermeiros no hospital, eu me peguei descrevendo as dores que sentia com aquela conhecida expressão: "não desejo isso nem ao meu pior inimigo". Eu não considero que tenha de fato qualquer inimigo, mas nos tempos conturbados em que vivemos, de tensões e conflitos à flor da pele (e da terra), de uma escalada da violência e da intolerância, não pude deixar de pensar no significado daquela expressão à luz da experiência de dor física (real, quase palpável) que estava vivendo naquele momento.
Não pude deixar de pensar também naqueles que adoram apontar contradições nos outros indivíduos (meu deus, o que poderia ser mais humano do que ser contraditório em certos momentos?) e ameaçam com a hipótese de que quando algo "acontecer com você" esse "discurso" dos direitos humanos cairá por terra e se revelará a verdadeira hipocrisia de quem a professa. Pois, meus caros, sinto desapontar a esses: a vivência da dor me fez ainda mais fervoroso na defesa desses direitos.
Mas... o que uma coisa tem a ver com a outra?
Bem, em primeiro lugar, quero contar o que aprendi com a dor. Primeiro: a dor não é racional nem sentimental - a não ser quando usamos, metaforicamente, a noção de dor para se referir a outras formas de sofrimento. A dor é física, e mobiliza o corpo, contra qualquer ideia preconcebida, se preciso. Talvez isso se alinhasse com a ideia de que um sofrimento real poria por terra a defesa de direitos a quem inflige sofrimento. Mas avancemos.
Segunda lição: tudo o que uma pessoa que sofre de dor deseja é que a ela cesse. Nada mais. Se alguém lhe disser que com morfina a dor passa, você permite que lhe apliquem morfina. Quanto maior a dor, mais irracional é o desejo de vê-la passar, e nessa hora parece que aceitamos qualquer promessa ou proposta. Consigo perfeitamente usar essa ideia para pensar em pessoas em situação de abstinência de qualquer vício que seja. Mas também em situações de desespero, aí o recurso ao misticismo, à religião (qualquer uma), a fórmulas mágicas de vida e livros de autoajuda.
Terceira: a dor é intransferível, não se compartilha. Aí é que a coisa complica. Se eu estou com dor, quero que a minha dor passe. Alguém dizer que a do outro é maior que a minha não alivia a dor em si. Dizer que "alguém vai pagar" pela dor que você está sofrendo não faz com que a dor seja mais suportável. Aí é que o desejo de vingança, para mim, se esvazia por completo: infligir dor ao outro não interfere em nada na minha própria dor. Matar o outro não traz o ente querido que foi morto.
Quarta e última: dor não é medida de mérito. Não há dor justa ou injusta, moral ou imoral. Quando atinge alguém, não existe nisso nenhum "castigo", e não faz sentido achar que há uma escala de dor proporcional a uma escala de pecado, com correlação entre a gravidade de um e a intensidade do outro. Exatamente pelos motivos das outras lições, eu não vejo nenhuma eficácia em considerar a dor como uma medida educativa ou punitiva. Ela não vai ensinar nada. Vai apenas despertar um instinto ou uma reação orgânica de defesa, de fuga, o que seja. Qualquer medida punitiva precisa ser facilmente identificada com o delito a que se refere, e a dor não pode fornecer esta identificação. 
Daí chegamos à sentença original: "não desejo isso nem ao meu pior inimigo". Que, em outras palavras, poderia ser: "não quero que ninguém sofra o que eu sofri". Por que eu quereria? Se quando estou sentindo dor, quero apenas que ela passe, se não adianta "compartilhar" a dor com outro que a minha não passará por causa disso, se ela será inútil em ensinar qualquer lição ao "inimigo", de que serve desejar a dor do outro? Esse desejo só é concebível por quem já não sente a dor, e só é verdadeiramente desejável por aqueles que nem tem mais a lembrança real de uma dor verdadeira.
Pensamentos como "foi pouco, tinha que ter dado um tiro na cabeça" são na verdade frases de efeito sem lastro. Sua enunciação revela apenas uma desconexão completa entre o que é dito e o significado do que é dito, uma alienação entre o conceito e a experiência da dor. Não consigo imaginar que pessoas normais e saudáveis se mantenham impassíveis ou até contentes diante de uma pessoa se contorcendo de dor, por exemplo. Digo "normais e saudáveis" porque para mim, evidentemente, um torturador ou um assassino não se enquandram nessa descrição, e sofrem daquela desconexão/alienação que citei.
O problema é que, talvez, a alienação em nossa sociedade tenha chegado também a essa esfera da vida pessoal: deseja-se a morte de alguém como se fosse apenas apertar um botão em um game e ver um corpo se estilhaçar. Ver uma pessoa urrando de dor é cena corriqueira em filmes do tipo "mocinho e bandido" dos mais diversos matizes: o "bandido" tortura um inocente, mas depois será devidamente punido, com altas doses de dor e sofrimento. Se nos acostumamos a ver isso em filmes e games, será que não é possível supor certo torpor nos nossos sentimentos de empatia, de identificação com a dor do outro? Se as "razões" justificam e perdoam, é possível ouvir o grito de dor, o corpo se contorcendo, e não sentir que interromper aquilo é urgente - é humano.
Quem ganha com essa indiferença para com o outro? Eu não. E sempre que ouvir ou ler qualquer relato de tortura, agressão, mutilação, seja da parte que for, com razão e com justiça ou não, eu imediatamente me lembrarei da minha pedra, me solidarizarei com o que sofre e desejarei que ele não seja novamente submetido à dor, de nenhuma espécie. Temos meios mais educativos, mais eficientes... e mais humanos de ensinar a quem erra qual a melhor maneira de não errar de novo.

18 de janeiro de 2014

Eugenia e urbanidade: notas sobre discriminação, segregação e o espaço urbano

Desde que começou o noticiário e o debate em torno dos "rolezinhos" nos shoppings, eu tenho pensado em escrever algo sobre esse fenômeno. Mas ao me deparar com uma notícia de pessoas barradas em processo seletivo para emprego sob acusação de "poluição visual e mau cheiro", acabei lembrando de algumas passagens da minha dissertação de mestrado - que este ano sairá em livro (aguardem!) - sobre a relação entre o pensamento eugenista, no princípio do século XX, e a organização do espaço urbano no Brasil, e em particular em São Paulo. Embora normalmente a eugenia seja associada a um discurso médico, eu argumento que também as práticas de organização do espaço urbano foram, com frequência, imbuídas de uma ideologia segregacionista e racista (no sentido de promover e defender práticas voltadas à "melhoria da raça", e também no sentido mais usual de discriminação especificamente de "negros" e "pardos"). A seguir, alguns excertos do livro, que podem facilmente ser relacionados ao debate atual em torno dos "rolezinhos".
Com o crescimento das cidades, a reordenação dos espaços urbanos se fez uma necessidade para as elites, e o higienismo tomou para si tal tarefa [...] – mas também a eugenia, com a contundente imposição de normas severas para regulara vida social das populações. O eugenismo brasileiro está intimamente ligado a essa tendência ruralista encontrada em certos segmentos da elite nacional nas décadas de 1920 e 30. [...] Contudo, mais importante para este trabalho doque a apologia eugenista do agrarismo é de fato o conteúdo explicitamente antiurbano.[...] Atribuído em grande parte ao crescimento urbano, o crime recebeu dos baianos uma abordagem que incidia, na realidade, sobre o criminoso– numa busca de sua classificação e tipificação. Parte de uma disputa entre médicos e juristas sobre a primazia na definição do criminoso, os médicos o concebem como um doente que difere dos demais apenas pela natureza de sua doença.
Em diversas passagens, os autores eugenistas se mostram praticamente em consenso quanto ao caráter “disgênico” das cidades.Esse entendimento justificou, por parte dos adeptos da eugenia, uma notável adesão à campanha sanitarista então em voga. A atuação dos eugenistas nesse campo, entretanto, caracteriza-se especialmente pelo disciplinamento das massas trabalhadoras através da noção de“higiene mental”, mais do que uma atuação de fato sobre o espaço físico das cidades. É desta forma que se deve compreender a influência da eugenia no pensamento urbanístico da época: afixação e “justificação” de uma atitude aparentemente“antiurbana” entre os médicos.
[...] Sob os preceitos da higiene mental foi criado, pelo dr. Antonio Carlos Pacheco e Silva, o Sanatório Pinel de Pirituba, para suprir a demanda proveniente do processo de urbanização e combater os “detritos da civilização” . [...] Muito interessante é a idéia, defendida por Pacheco e Silva, do papel potencialmente degenerador dos meios de comunicação:(...) o rádio com seu formidável poder de difusão de idéias, a facilidade de comunicações entre os mais afastados continentes advinda com a aviação aérea, os incalculáveis avanços das ciências físicas e naturais exerceram poderosa influência sobre o espírito humano, que não teve ainda o tempo necessário para sedimentar tamanha messe de conhecimento. Se daí resultaram grandes benefícios para a humanidade, se o homem moderno usufrui de maior conforto, resultante das novas descobertas, paga por outro lado maior tributo ao progresso e, dentre esses tributos, um dos mais caros é,sem dúvida, o número crescente, e por que não dizer assustador,dos desequilibrados do espírito. (apud COUTO, 1999:19, 1994:20-1)
A intensa urbanização do período fez emergir a questão da loucura, à medida que a maior concentração populacional acaba sendo interpretada como fonte potencial de“epidemias psíquicas”. Essa concepção é assim expressa por Renato Kehl:
A situação, sobretudo nas grandes coletividades, chega a tal gravidade que se admite, francamente, ‘ser impossível lutar vitoriosamente contra o viciado meio social’ (...) Ninguém poderá negar que a vida artificial e artificiosa em que vivemos arrasta inúmeras pessoas às doenças mentais. (...) a par do pauperismo e da ignorância, destaca-se outro elemento importante de degradação– o urbanismo hipertrofiado. (KEHL,1937:19, 76).
De forma semelhante se expressa o doutor Pacheco e Silva:
Freqüentemente, nas grandes aglomerações, os homens deixam-se conduzir por indivíduos tarados, portadores de estados psicopáticos,de idéias mórbidas de reivindicação, de delírios pleitistas, de idéias delirantes de perseguição. Tais tipos mórbidos são dotados de grande capacidade de proselitismo e são extremamente ativos na defesa de suas idéias mórbidas, razão por que exercem grande influência sobre as massas. (apud COUTO, 1994:25-6).
A declaração acima introduz também uma importante formulação do movimento de higiene mental eugenista: a admissão de fatores sociais, e sua vinculação a finalidades políticas, como elementos “disgênicos” – no caso, o ativista político passa a ser tratado como um paranóico. O mesmo era aplicado, com muita frequência, às feministas da época. As mulheres, concebidas pelos eugenistas como “sacerdotisas da Eugenia”, frágeis física e intelectualmente, deveriam se enquadrar em rígidos moldes comportamentais sob risco de terem sua cidadania esvaziada sob o diagnóstico de “enlouquecimento” – o feminismo era visto como uma ameaça à família.Seria considerado sintoma de loucura, além desses, qualquer “desviocomportamental” que pudesse representar ameaça à propriedade(avarícia, vício de jogos, prodigalidade).
Assegurar a ordem social, cada vez mais “ameaçada”pelo crescimento das cidades, foi um dos principais papéis atribuídos às instituições psiquiátricas, e a grande motivação para criação do Sanatório Pinel de Pirituba, que pudesse descentralizar o serviço psiquiátrico do Juqueri, já superlotadona década de 1920. O Sanatório de Pacheco e Silva deve ser entendido como uma resposta ao crescimento da cidade – e um exemplo do esforço eugênico para ordenação do espaço urbano –, para o qual contribuíram membros da elite social paulista, capitalistas,comerciantes e advogados, sem falar dos médicos.
As preocupações da saúde pública com a loucura e o crime, no entanto, representam apenas parte da herança deixada pela eugenia ao pensamento sobre as cidades. Outra parte é apresentada pela preocupação com questões de ordem demográfica – as quais fazem sentido apenas num contexto de alta concentraçãopopulacional, como nas cidades. Assim, não é de se estranhar que os eugenistas tenham representado um papel tão importante no desenvolvimento da estatística. Nela se baseava todo seu método: as comparações que permitem estabelecer os limiares entre o normale o anormal (ou ainda o subnormal, termo que persiste incólume no vocabulário técnico de descrição das condições de moradia) são estatísticas; também o são todos os instrumentos de projeção de tendências demográficas, com as quais se permite extrapolar, como retrato de uma população total, o resultado obtido em uma pequena amostra. Independente da validade ou não de tais extrapolações,o que se percebe é que os avanços da demografia estatística permitem olhar o urbano sem nele entrar – sem se misturar à multidão.
[...] Por fim, a ideologia antiurbana, que no Brasil se apoiou fortemente no eugenismo a partir das décadas iniciais do século XX,deveria ser doravante confrontada sempre com essa associação entre as condições de vida de um ambiente urbano e a degradação (moral)de suas populações. Basta lembrar que essa interpretação sempre parte de uma representação que coloca o grau “elevado”, o padrão de comparação, no modo de vida da elite.
Tal associação, sabe-se, não é criação da Eugenia.A novidade que esta traz é a formulação de instrumentos políticos e institucionais para combater a “degenerescência”, que não é senão o crescimento da população pobre em comparação com a rica.Esses instrumentos têm um princípio basilar: melhorar as condições de vida dos mais pobres significa incentivar sua “proliferação”;em compensação, o investimento em benefício das elites tem o papel“salutar” de promover a expansão do “melhor estoque humano”.Este princípio basilar é expressamente proposto por Francis Galton, e mesmo que a discussão sobre “melhoria da raça” tenha sido aparentemente superada, trata-se mais de uma mudança de termos e vocabulário do que de fato do conteúdo ideológico.
Assim, diversas formas de repressão violenta do“crime”, praticadas ainda hoje e com apoio de diversos setores da sociedade, carregam essa carga simbólica de “combate aos degenerados”. Encontram-se diversos resquícios de eugenismo na idéia de que a expulsão dos pobres irá melhorar um dado ambiente ao livrá-lo da criminalidade, ou da baderna – formulação repetida exaustivamente em tantos programas de “requalificação”,“revitalização” ou outros “re’s”. O argumento de que o urbanismo não teria sido influenciado diretamente pela eugenia é, portanto, frágil: em muitos casos, serviu como um instrumento eficaz de eugenização tácita do espaço urbano. De resto, quando se constata que, atualmente, “ricos vivem mais e pobres morrem maiscedo”, testemunha-se uma situação em que o projeto social de Francis Galton se encontra em pleno andamento.