13 de julho de 2014

Futebol e música em tempo de crises

A campanha da seleção brasileira nesta Copa do Mundo trouxe à baila uma série de comentários sobre uma "crise" do futebol brasileiro, chamamentos à sua reforma (ou revolução, conforme prefiram alguns), necessidade de se "reinventar" ou se "redescobrir". A sensação geral que perpassa todos esses comentários é a de que algo se perdeu e precisa ser resgatado. Um traço da "personalidade" brasileira, de sua identidade. Para uns, o erro esteve em abandonar o futebol que era o "típico" futebol brasileiro: o toque, o drible, a ginga e o... improviso. Outros, na direção contrária, apontam como erro a recusa do futebol brasileiro em se "modernizar", segundo os parâmetros do futebol... quem adivinha?... europeu (é claro). A esses últimos não posso deixar de lembrar que foi justamente o clamor pela "modernização" (após quatro copas de "fracassos" entre 1970 e 1986, quando tivemos excelentes times mas não conseguimos "ganhar a Copa") que nos levou à famigerada "era Dunga" de Sebastião Lazzaroni... É toda uma geração de atletas, treinadores, cartolas e jornalistas que vem dizendo, há décadas, que o futebol brasileiro precisa se profissionalizar, modernizar. Que o jogador precisa, antes de tudo, de condicionamento físico e tático, etc etc etc.
Curiosamente, a mesma sensação de perda ou descaracterização tem rondado muito do que se fala sobre a nossa música. Assim como no futebol, onde lamentamos a ausência de Pelés, Garrinchas, Zicos ou quetais, também suspiramos ante a ausência atual de Jobins, Chicos, Caetanos... A impressão de "decadência" ou (para usar um termo ainda mais forte) "degeneração" da nossa música é provada pela preponderância dos pagodes mela-cueca, do "sertanejo universitário" ou o que quer que seja. Aqui também a discussão se dá em torno da questão da "identidade nacional": estaríamos abandonando nossas "raízes" em favor de uma sonoridade "globalizada", ou a realidade é que a modernização é um processo irrefreável?
A única resposta que me ocorre, num caso como no outro, é a que tenho dado repetidamente nos últimos tempos: não generalizemos. Para entender o que ocorre com o futebol e com a música no Brasil, é preciso ser capaz, primeiramente, de circunscrever a questão, para depois olhar para o lado de fora. Estamos falando de um futebol e de uma música que se tornaram imensas e poderosas atividades econômicas. São parte de uma indústria de entretenimento ou de esportes altamente profissionalizados, globalizados (e, quando digo isso, estou dizendo também que integram um circuito altamente financeirizado, especulativo e competitivo segundo os ditames neoliberais que regem essa tal "globalização"). São atividades em que o fim não é o esporte ou a arte em si, mas o lucro que geram. Mas, nem de longe, essa música e esse futebol correspondem à totalidade do que se faz no Brasil.
Que se diga então que as atividades econômicas baseadas na cultura ou no esporte brasileiros precisariam se reformular e transformar. Perguntemos: para quê, e para quem? Ganhamos duas Copas do Mundo desde Lazzaroni até hoje (ou seja, em plena globalização), e temos jogadores frequentemente listados entre os mais valiosos do mundo, ou entre os maiores jogadores do mundo (talvez, circunstancialmente, estejamos numa fase de vacas magras... mas já passamos por isso antes). Do mesmo jeito, artistas brasileiros têm participado ativamente de circuitos internacionalizados da música. O negócio vai bem, sim, obrigado. Quem lucra com ele continua lucrando.
Algo me diz, porém, que o futebol e a música que gostaríamos mesmo de reconhecer como nossa está longe das "arenas" ou dos programas de televisão. Posso dizer pela música, que conheço um pouco melhor: exatamente agora, há uma geração absolutamente fantástica de compositores, intérpretes, instrumentistas, que não devem nada às gerações anteriores em termos de inventividade, exploração, domínio dos repertórios tradicionais e capacidade de reelaboração dessa mesma tradição. Que talvez esperem apenas o momento de sua "descoberta", se é que esperam. Na verdade, para muitos deles, isso não faz diferença: integrar o circuito da "indústria musical" é visto muitas vezes como limitante - ainda que, talvez, muitos desejassem poder viver de sua arte.
No futebol, onde parece se generalizar a ideia de que tudo não passa de um grande negócio (com as constantes suspeitas de manipulação e ingerências de toda espécie), nada me impede de imaginar que exista ainda, em outros campos, talvez nas ruas, e longe das "escolinhas de futebol", da visão dos "olheiros" e do alcance dos "empresários". Um futebol que, como a música, é primeiramente praticado pelo prazer de jogar. Ali talvez encontremos ainda os nossos talentos, o improviso, o jogo coletivo, o toque de bola. Ali também poderemos encontrar quem pouco se importe com a "profissionalização" e não faça nenhuma questão de ser um novo astro. Embora, também, talvez haja quem desejasse poder viver do que sabe fazer de melhor.
Não é preciso medir o sucesso da nossa música ou do nosso futebol pelo título na Copa do Mundo ou pelo vencedor de "Ídolos". E, principalmente, não é preciso medir nosso valor como "povo" ou "nação" usando réguas que não são nossas. Não há porque duvidar que voltemos a ser campeões do mundo, não há porque achar que nunca mais teremos outros Chicos e Tons. Mas estaremos simplesmente errando o foco se quisermos orientar nossas artes maiores para a obtenção de "resultados", segundo uma lógica estritamente empresarial. Vamos brincar de novo.

11 de julho de 2014

Da seleção ao Brasil Genérico


Mal acabou a partida em que a seleção brasileira de futebol foi vencida pela alemã pelo inacreditável placar de 7 x 1, já começaram a surgir os textos que, junto com a demanda justa por uma grande transformação do futebol brasileiro (mais organização, mais profissionalismo, mais preparação e planejamento, etc.) trouxe também uma série de interpretações que tentavam justificar o fracasso futebolístico a partir de uma tentativa de tornar a seleção um emblema ou síntese de toda a nação ou de seu povo.
Há uma longa tradição de ensaios interpretativos da nação, na qual às vezes elementos supostamente simples (como o carnaval) são tomados como um ponto de interseção de múltiplos traços do "caráter nacional". Geralmente, ensaios filosóficos, antropológicos, sociológicos, que procuram extrair de um indício (no caso, a partida de futebol) uma possível confluência de vários outros processos ou caracteres que poderiam ser elucidados a partir desse evento sintético. Evidentemente, poucos deles (se é que algum) têm o mesmo sucesso, e sequer a mesma perspicácia ou profundidade de um Sérgio Buarque de Hollanda. Na maioria esmagadora dos casos, recorre-se a concepções já bastante desgastadas da "identidade nacional" ou a estereótipos, preconceitos, generalizações rasas. Muito eficientes pra alimentar uma boa discussão de boteco, mas que pouco acrescentaria a um debate mais sério sobre o país.
Isso porque, basicamente, os termos da discussão se amparam em noções genéricas tão vagas quanto discutíveis: para ficar em um só exemplo, afinal quem é "o" brasileiro? Quem pode afirmar que "o brasileiro" não é racional, não planeja, é "malandro", trata tudo na base do "improviso"? Pergunto ao leitor: em que medida você mesmo se identifica com essa descrição? Com muito boa (ou má) vontade, talvez você admita um traço de malandragem aqui, um pouco de improviso acolá, mas tenho certeza de que, no geral, sua vida é pautada por decisões, e várias delas são profundamente refletidas.
O problema é tão velho quanto os estereótipos que alimentam esse tipo de discussão: o "brasileiro" ou o "Brasil", genericamente falando, é uma abstração de quem o vê de cima ou de fora. Esses raramente se dão ao trabalho de compreender situações e contextos reais, específicos em seu tempo e espaço. E raramente enxergam na "malandragem" uma resposta, dentre outras possíveis, a uma opressão violentíssima e historicamente constante contra a população. Ou a suposta "falta de planejamento" a um descaso com o interesse público da parte de quem, seja como for, sairá sempre ganhando. Essas generalizações, quase invariavelmente, assumem um tom depreciativo, e essa depreciação incide invariavelmente sobre aqueles com os quais o narrador se recusa a se identificar. Estão, portanto, sempre abaixo. Curiosamente, esses são os textos que, supostamente, estariam fazendo o grande favor de "politizar" uma atividade que, se tratada nos estritos limites de sua própria realização (o futebol), conduziriam invariavelmente à alienação.
Eu, thompsoniano assumido, recuso essas generalizações idealistas e opto sempre pelo caminho (ainda que mais trabalhoso e menos confortante) de examinar o "povo brasileiro" em casos concretos, em situações reais, em meio a conflitos e tensões, com recursos limitados e pouca "visão do todo" (que, na realidade, nenhum sujeito histórico realmente tem), com possibilidades e escolhas limitadas, e entender em meio a isso tudo que respostas são dadas aos problemas e por quê. É fato que não consigo, na maioria das vezes, depreender uma "regra" que me permita julgar uma nação e um povo como se fosse uma unidade indistinta e uniforme. Mas consigo preservar alguma prudência para observar quem está falando, de que posição (e a que distância), sobre quem, e julgar se desejo me alinhar a ele - e, quase sempre, prefiro não.
Ganho, ainda, outro benefício: rio e choro junto com todos os outros, sem julgá-los. E assisto ao futebol me divertindo ou sofrendo com eles (como foi neste jogo Brasil x Alemanha) sem arrogância nem pedantismo.