12 de outubro de 2015

Quem não tem colírio usa óculos escuros (ou "o fim da música")

Num artigo recente, o filósofo e professor da USP Vladimir Safatle decreta o "fim da música", queixando-se de que o momento atual, diferentemente de todos os outros em que o Brasil testemunhou desenvolvimento econômico, não tem a contrapartida de um florescimento da produção cultural - especificamente, da musical. O texto está aqui.
A linha de argumentação do articulista se baseia numa articulação entre a produção musical, a ideologia de uma identidade nacional e a relação entre as duas que foi, por seguidas gerações, caracterizada por um diálogo rico mas também crítico. A proposição é instigante e rica o suficiente para suscitar boas discussões. Mas o autor barra uma discussão mais séria ao assumir a premissa de que esse diálogo entre música e identidade nacional não produziu nada de relevante desde os anos 1990, e de que desde então o que se produz na música brasileira, de maneira geral, não discute, não problematiza, mas ao contrário, naturaliza as relações sociais hegemônicas, citando o axé, o sertanejo universitário e o funk. Safatle se ressente da suposta ausência de artistas que possam ser tomados como "expoentes maiores da consciência crítica nacional" como, segundo ele, teriam sido os artistas populares até os anos 1980. Essas premissas estão, a meu ver, completamente equivocadas, e pretendo apontar esses equívocos aqui. Mas há ainda um problema no texto que é o de se defender previamente de críticas que sabe que receberá (porque o argumento é ruim) atacando e desqualificando previamente qualquer possibilidade de relativizar sua generalização grosseira, ao apelar para expressões como "esquema tosco da luta de classes", ou "esquemas sociológicos primários".

Música e identidade nacional

Safatle demonstra conhecer bem a construção ideológica dos mitos de identidades nacionais, especialmente na Europa (século XIX), e aparentemente conhece um pouco dessa construção no Brasil getulista, ao citar Villa Lobos e Mário de Andrade. Deve saber, então, que Mário classificava as expressões musicais em "erudita", "popular" e "popularesca": a primeira, escrita segundos os cânones da música européia; a segunda, a de tradição oral e "folclórica" (o termo ainda era usual); todas as demais eram então "popularescas", algo como uma "regressão" (já que Safatle usa este termo) e uma forma de corrupção da genuína música brasileira. O samba, para Mário de Andrade, era essa terceira forma "popularesca", a não ser que se tratasse de sambas rurais. Nada da canção radiofônica e dos discos lhe era digno de valorização.
Uma extensa bibliografia sobre a história social da música (que eu recomendaria a Safatle que lesse) mostra como a adoção do samba como expressão-símbolo da brasilidade se deu nos anos 1930 (e fortemente apoiada pelo Estado getulista) por meio de um forte intervencionismo, que unificou variações rítmicas-melódicas-harmônicas muito distintas em um único gênero, "samba", e apagou diferenças regionais importantes - o samba rural paulista, a música dos negros do sul, por exemplo. Mais do que isso, promoveu um forte disciplinamento do conteúdo temático desses sambas, promovendo o "samba-exaltação" do tipo Aquarela do Brasil, e censurando os sambas de malandragem. Foi isso o que abriu espaço para que a música - agora reconhecida como popular e não apenas como popularesca - fosse trazida à linha de frente do debate cultural, e não o fato de que o Brasil tenha deixado então de ser "um clube associativo de donos de fazenda". Essa música popular foi devidamente disciplinada e higienizada antes que se lhe fosse concedido algum espaço.

A "linha evolutiva da música popular brasileira"

Aí é possível traçar uma "linha evolutiva da música brasileira" que, evidentemente, é uma delimitação profundamente ideológica. Elegem-se os baluartes, e a partir deles seus "precursores" e seus "herdeiros". Vale aí ler um pouco mais de Raymond Williams, caro Vladimir Safatle (ou será que também Williams usava "esquemas sociológicos toscos"?). E assim é que a nossa "linha evolutiva" vai de Tia Ciata a Noel Rosa, daí para a Bossa Nova e seus "herdeiros", a Tropicália, e chegamos, com alguma boa vontade, ao BRock dos anos 1980. O tanto de expressões ofuscadas por esses movimentos da "linha de frente" parece não ter importância para Safatle. Não tinha para os defensores da "linha evolutiva", e o filósofo parece se identificar plenamente com essa visão.
A hipótese da "linha evolutiva da música popular brasileira", proposta nos anos 1960, tem sido bastante debatida e, claro, criticada. Primeiro, por seu esquematismo e determinismo; segundo, porque é autoritária ao definir de antemão os critérios pelos quais se mede a "evolução" (entre os quais a "complexidade" harmônica, melódica ou temática; a incorporação de expedientes eruditos de composição; ou ainda a incorporação de referências musicais dominantes, como o jazz no caso da Bossa Nova ou o rock no caso do Tropicalismo); terceiro, porque é seletiva: uma imensa parcela da produção musical popular desses períodos é apagada ou desqualificada porque não se enquadra no esquema "evolutivo".
O que tem-se debatido desde os anos 90 é um hipotético (ainda não comprovado) "fim da canção". Não a extinção, mas o esgotamento como meio de expressão artística com potência de inovação: a canção estaria sendo superada por colagens sonoras, vinhetas, ou até por extensas obras de experimentação sonora. A fala tomando lugar do canto, o ruído no lugar da melodia, a repetição em lugar do esquema tensão-resolução, o que seja. Mas esse debate não se dá, de maneira nenhuma, nos termos de "regressão musical" como Safatle propõe. O que mais se assemelha a esse "fim da música", como propõe o filósofo, é um tipo de comparação simplista e preconceituosa de memes que circulam nas redes sociais, como estes:




O joio e o trigo

O ponto mais problemático do texto é o que procura comparar a produção dos anos 70 e 80 com a mais recente (anos 90 e início do século XXI). Exceto pela concessão genérica a "experiências musicais inovadoras", o autor vê um deslocamento, ou marginalização, dessas experiências e o domínio cada vez mais absoluto de formas de música "que louva a simplicidade formal, a estereotipia dos afetos, a segurança do já visto, isso quando não é a pura louvação da inserção social conformada e conformista".
Ou Safatle ignora completamente o panorama mais amplo da produção musical brasileira nos períodos que ele exalta, ou esconde deliberadamente o que não lhe convém para poder sustentar seu argumento. Porque a crítica que ele faz à música contemporânea sua parece ecoar quase ipsis literis as críticas que, nos anos 60, se fazia ao grosso da produção musical da época:
“O povo canta” desloca o sentido comum da música popular, dos problemas puramente individuais para um âmbito geral: o compositor se faz o intérprete esclarecido dos sentimentos populares, induzindo-o a perceber as causas de muitas das dificuldades com que se debate. Deste modo, foge-se ao sentimental e ao “moderninho” em que, de maneira geral, cai a temática da música que se entrega ao consumo das massas populares e que funciona como fator de entretenimento (e amortecimento). (CPC-UNE, 1962).
Uma década mais tarde, não é difícil encontrar as mesmas queixas ao caráter "conformado e conformista" da música "de massa" de músicos definidos como "bregas", por exemplo. Os críticos não lhe devotavam atenção e não a consideravam digna de nota ou sequer capazes de problematizar as questões nacionais, mas é sabido que vendiam centenas de vezes mais do que os artistas da "linha de frente do debate cultural" nacional. Assim, em toda a história da música popular brasileira no século XX, a produção que tendia a (ou pretendia) "complexificar as imagens produzidas por nossa ideologia nacional" sempre conviveu com outra, mais ampla e difundida, que reiterava essa ideologia. Essa complexificação sempre foi marginal: o Caetano que faz sucesso não é o de Cinema Transcedental, mas o de Você não me ensinou a te esquecer; Gal Costa é, para a maioria das pessoas, a intérprete de Chuva de Prata e não a de Objeto sim, objeto não. Sucesso não é parâmetro de qualidade, é certo, mas se é para falar de regressão musical, que se compare o sertanejo universitário com o sertanejo mexicanizado dos anos 70, por exemplo. E que se faça o favor de lembrar que os próprios autores que Safatle elogia já declararam apoio ao funk (Caetano cantando "Um tapinha não dói", por exemplo).

Um problema brasileiro?

Safatle baseia sua análise da música brasileira no circuito musical estritamente brasileiro, mas desde o advento do disco a nossa música dialoga com a produção internacional: as companhias de disco sempre foram majoritariamente estrangeiras, em número de companhias, porte, produção fonográfica, vendas e... elenco: os grandes nomes da MPB eram ligados à Phillips, Roberto Carlos gravou seus melhores discos nos EUA. No que isso depõe contra esses artistas? Nada, em princípio. Mas para falar da indústria cultural brasileira é preciso lembrar que esse diálogo sempre existiu: Chiclete com Banana, Boogie Woogie na Favela, Jovem Guarda, Mutantes...
Lembrar desse diálogo é fundamental para ampliar nossa perspectiva: o problema do esgotamento da canção e dos músicos como figuras de frente dos debates sociais de seu tempo é exclusivamente nosso? É uma hipótese a examinar, mas parece plausível que os americanos se ressintam igualmente da falta de novos Dylans, Morrisons ou Hendrixes, ou os britânicos considerem que a música do Reino Unido não parece capaz de produzir novos Beatles ou Stones. Se há uma regressão, é possível que esteja acontecendo em diversas partes do mundo, e promovida pelos mesmos agentes da ideologia do livre mercado, da indústria cultural e da homogeneização da sociedade do espetáculo. Mas repito: é possível. Pouco sabemos da música oriental além de Psy, e mesmo a nossa esquerda dialoga muito pouco com a nova canção latinoamericana, árabe (os levantes da Turquia e Tunísia produziram algumas das mais fortes canções de protesto da atualidade). Talvez o problema não seja mundial, mas certamente não é exclusivo nosso, e nem pode ser analisado como um processo exclusivamente endógeno.

A produção atual

O que torna mais complexa a análise da produção musical na atualidade é que, diferente da época áurea da indústria fonográfica, ela não pode ser detectada apenas no circuito disco-rádio-TV. A internet modificou profundamente a produção musical brasileira, e pelo menos de duas maneiras (possivelmente há outras): os artistas "independentes" alcançam mais diretamente seu público com a disponibilização, muitas vezes gratuita, de suas obras em sites pessoais, rádios online, etc.; houve uma segmentação mais clara desses públicos, a partir dos recursos de "seguir" um ou outro artista, das indicações e recomendações de amigos e conhecidos via redes sociais, mídias e publicações especializadas, etc. Mesmo não sendo ainda hegemônica, essa produção tem volume e público comparáveis aos das épocas que Safatle elogia, apenas não se valem dos mesmos meios de divulgação para alcançar seu público. Neste sentido, Safatle evidencia menos a pobreza da produção atual do que sua própria limitação em identificar, acessar e reconhecer essa nova produção. Mas é preciso buscar esses artistas: seus trabalhos estão aí facilmente encontráveis, mas sua opção pela produção e distribuição independentes da grande mídia e da indústria fonográfica dificultará sua aparição em veículos onde ainda impera a lógica do jabá.
Talvez Safatle tenha razão e legitimidade de cobrar alguma qualidade crítica maior dos artistas da MPB mais difundida. De fato, há uma parcela considerável de artistas que nem se enquadram nas "experiências musicais inovadoras" nem sejam da produção massiva dos funks, sertanejos e afins, cuja música não pode ser caracterizada pela simplicidade formal, mas que nem de longe chega a trazer algum "problema para o dominante": na verdade, essa é a própria trilha sonora do dominante. Que a parcela dominante tenha, em dado momento, acolhido a própria crítica e oposição à dominação, é um problema que deixo para Roberto Schwarz. Mas a música que tem relevância nesse sentido reivindicado por Safatle existe sim, e não é tão marginal quanto ele imagina. É inacreditável, por exemplo, que o articulista não seja capaz de reconhecer o valor cultural do rap, que está muito longe de ser uma simples "experiência musical inovadora" relativamente marginal: é, ao contrário, uma das mais importantes vertentes da música brasileira exatamente a partir dos anos 90. Não é que não haja, portanto: é Safatle que não vê. Também nos anos 90, juntamente com o axé emergiu o "mangue beat", que reposicionou completamente a herança antropofágica e tropicalista, e não pode ser caracterizada como simplesmente marginal à música brasileira em geral, exceto à custa de uma operação injustificável de esquecimento.
No início do século XXI, apenas para citar São Paulo, uma riquíssima cena cultural se formou em torno de certas redes bastante segmentadas mas muito bem articuladas: além da cena do rap/hip hop, o samba em suas diversas "comunidades" (como o Samba da Vela, da Laje, o Berço do Samba de São Mateus, etc), e que foram ricamente investigados no documentário "Samba à Paulista" (aqui um trecho); na rede de artistas que se autointitulou "Clube da Encruza" (Metá Metá, Passo Torto e numerosos parceiros). E mesmo que se tome a produção "mainstream", há que se olhar com maior atenção a esse universo da "inserção social", como nos "funk ostentação" que, muito mais do que uma expressão "conformada e conformista", desafia e testa constantemente os limites dessa inserção, desnudando o caráter ainda classista (sim), racial e de gênero dessa inserção. Os Racionais MCs entenderam: seu último e impactante disco tematiza exatamente essa inserção pelo consumo e dialoga com o universo do funk ostentação de forma direta, tensa, mas a partir de dentro.
Não há motivos para duvidar de que haja outras expressões igualmente ricas em outras regiões do Brasil, e que não se tratem apenas da pobreza formal e de conteúdo que Safatle critica. Mas é preciso buscar mesmo, elas não virão de mão beijada.
O incômodo de Safatle com a música atual talvez não deva ser entendido como uma crise da própria produção musical, como ele quer fazer crer, e sim uma crise social que resulta no profundo distanciamento de uma parcela da população (e da qual ele mesmo, querendo ou não, faz parte) em relação ao restante do "povo". Não é que não se problematize mais: ele não encontra quem o faça. Não é que a produção cultural mais crítica tenha sido posta à margem: ele é que foi. Não é que o espaço para a discussão séria das questões da sociedade tenha desaparecido: quem o faz é que procura outros circuitos para fazê-la. E não é porque alguém não os vê que deixaram de existir: quem não vê que procure melhor. Nada mais sintomático do quanto essa nova produção "incomoda o dominador" do que as tentativas de desqualificar a produção atual. Lixo cultural existe, mas também havia em outros momentos. Mas quem quer entender a sociedade e suas tensões deve olhar também para ela e não só para o que lhe agrada. Isso não tem nada de "esquema tosco da luta de classes", nem de "aplicar esquemas sociológicos primários", pelo contrário: significa levar adiante os esforços de algumas gerações de "historiadores sociais" que viram também na cultura as tensões sociais e a luta de classes - sim, a luta de classes: a "cultura de classe" que inspirou os trabalhos de Williams, de E. P. Thompson, de Eric Hobsbawm e tantos historiadores brasileiros que se inspiraram nesses trabalhos e que refinaram a discussão social/sociológica para muito além do que Safatle parece conhecer (ou disposto a reconhecer). O que falta ao filósofo, então, é seguir sua própria recomendação: ouvir de fato o que se produz. E se for para "nos perguntarmos por que chegamos a esse ponto", isso significa nos perguntarmos o que aconteceu nessa última geração para que a produção realmente relevante da música brasileira tenha decidido não depender mais da chancela dos "formadores de opinião" e articulistas de jornal.
"Something is happening and you don't know what it is". Do you, Mr. Safatle?

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