12 de outubro de 2015

Quem não tem colírio usa óculos escuros (ou "o fim da música")

Num artigo recente, o filósofo e professor da USP Vladimir Safatle decreta o "fim da música", queixando-se de que o momento atual, diferentemente de todos os outros em que o Brasil testemunhou desenvolvimento econômico, não tem a contrapartida de um florescimento da produção cultural - especificamente, da musical. O texto está aqui.
A linha de argumentação do articulista se baseia numa articulação entre a produção musical, a ideologia de uma identidade nacional e a relação entre as duas que foi, por seguidas gerações, caracterizada por um diálogo rico mas também crítico. A proposição é instigante e rica o suficiente para suscitar boas discussões. Mas o autor barra uma discussão mais séria ao assumir a premissa de que esse diálogo entre música e identidade nacional não produziu nada de relevante desde os anos 1990, e de que desde então o que se produz na música brasileira, de maneira geral, não discute, não problematiza, mas ao contrário, naturaliza as relações sociais hegemônicas, citando o axé, o sertanejo universitário e o funk. Safatle se ressente da suposta ausência de artistas que possam ser tomados como "expoentes maiores da consciência crítica nacional" como, segundo ele, teriam sido os artistas populares até os anos 1980. Essas premissas estão, a meu ver, completamente equivocadas, e pretendo apontar esses equívocos aqui. Mas há ainda um problema no texto que é o de se defender previamente de críticas que sabe que receberá (porque o argumento é ruim) atacando e desqualificando previamente qualquer possibilidade de relativizar sua generalização grosseira, ao apelar para expressões como "esquema tosco da luta de classes", ou "esquemas sociológicos primários".

Música e identidade nacional

Safatle demonstra conhecer bem a construção ideológica dos mitos de identidades nacionais, especialmente na Europa (século XIX), e aparentemente conhece um pouco dessa construção no Brasil getulista, ao citar Villa Lobos e Mário de Andrade. Deve saber, então, que Mário classificava as expressões musicais em "erudita", "popular" e "popularesca": a primeira, escrita segundos os cânones da música européia; a segunda, a de tradição oral e "folclórica" (o termo ainda era usual); todas as demais eram então "popularescas", algo como uma "regressão" (já que Safatle usa este termo) e uma forma de corrupção da genuína música brasileira. O samba, para Mário de Andrade, era essa terceira forma "popularesca", a não ser que se tratasse de sambas rurais. Nada da canção radiofônica e dos discos lhe era digno de valorização.
Uma extensa bibliografia sobre a história social da música (que eu recomendaria a Safatle que lesse) mostra como a adoção do samba como expressão-símbolo da brasilidade se deu nos anos 1930 (e fortemente apoiada pelo Estado getulista) por meio de um forte intervencionismo, que unificou variações rítmicas-melódicas-harmônicas muito distintas em um único gênero, "samba", e apagou diferenças regionais importantes - o samba rural paulista, a música dos negros do sul, por exemplo. Mais do que isso, promoveu um forte disciplinamento do conteúdo temático desses sambas, promovendo o "samba-exaltação" do tipo Aquarela do Brasil, e censurando os sambas de malandragem. Foi isso o que abriu espaço para que a música - agora reconhecida como popular e não apenas como popularesca - fosse trazida à linha de frente do debate cultural, e não o fato de que o Brasil tenha deixado então de ser "um clube associativo de donos de fazenda". Essa música popular foi devidamente disciplinada e higienizada antes que se lhe fosse concedido algum espaço.

A "linha evolutiva da música popular brasileira"

Aí é possível traçar uma "linha evolutiva da música brasileira" que, evidentemente, é uma delimitação profundamente ideológica. Elegem-se os baluartes, e a partir deles seus "precursores" e seus "herdeiros". Vale aí ler um pouco mais de Raymond Williams, caro Vladimir Safatle (ou será que também Williams usava "esquemas sociológicos toscos"?). E assim é que a nossa "linha evolutiva" vai de Tia Ciata a Noel Rosa, daí para a Bossa Nova e seus "herdeiros", a Tropicália, e chegamos, com alguma boa vontade, ao BRock dos anos 1980. O tanto de expressões ofuscadas por esses movimentos da "linha de frente" parece não ter importância para Safatle. Não tinha para os defensores da "linha evolutiva", e o filósofo parece se identificar plenamente com essa visão.
A hipótese da "linha evolutiva da música popular brasileira", proposta nos anos 1960, tem sido bastante debatida e, claro, criticada. Primeiro, por seu esquematismo e determinismo; segundo, porque é autoritária ao definir de antemão os critérios pelos quais se mede a "evolução" (entre os quais a "complexidade" harmônica, melódica ou temática; a incorporação de expedientes eruditos de composição; ou ainda a incorporação de referências musicais dominantes, como o jazz no caso da Bossa Nova ou o rock no caso do Tropicalismo); terceiro, porque é seletiva: uma imensa parcela da produção musical popular desses períodos é apagada ou desqualificada porque não se enquadra no esquema "evolutivo".
O que tem-se debatido desde os anos 90 é um hipotético (ainda não comprovado) "fim da canção". Não a extinção, mas o esgotamento como meio de expressão artística com potência de inovação: a canção estaria sendo superada por colagens sonoras, vinhetas, ou até por extensas obras de experimentação sonora. A fala tomando lugar do canto, o ruído no lugar da melodia, a repetição em lugar do esquema tensão-resolução, o que seja. Mas esse debate não se dá, de maneira nenhuma, nos termos de "regressão musical" como Safatle propõe. O que mais se assemelha a esse "fim da música", como propõe o filósofo, é um tipo de comparação simplista e preconceituosa de memes que circulam nas redes sociais, como estes:




O joio e o trigo

O ponto mais problemático do texto é o que procura comparar a produção dos anos 70 e 80 com a mais recente (anos 90 e início do século XXI). Exceto pela concessão genérica a "experiências musicais inovadoras", o autor vê um deslocamento, ou marginalização, dessas experiências e o domínio cada vez mais absoluto de formas de música "que louva a simplicidade formal, a estereotipia dos afetos, a segurança do já visto, isso quando não é a pura louvação da inserção social conformada e conformista".
Ou Safatle ignora completamente o panorama mais amplo da produção musical brasileira nos períodos que ele exalta, ou esconde deliberadamente o que não lhe convém para poder sustentar seu argumento. Porque a crítica que ele faz à música contemporânea sua parece ecoar quase ipsis literis as críticas que, nos anos 60, se fazia ao grosso da produção musical da época:
“O povo canta” desloca o sentido comum da música popular, dos problemas puramente individuais para um âmbito geral: o compositor se faz o intérprete esclarecido dos sentimentos populares, induzindo-o a perceber as causas de muitas das dificuldades com que se debate. Deste modo, foge-se ao sentimental e ao “moderninho” em que, de maneira geral, cai a temática da música que se entrega ao consumo das massas populares e que funciona como fator de entretenimento (e amortecimento). (CPC-UNE, 1962).
Uma década mais tarde, não é difícil encontrar as mesmas queixas ao caráter "conformado e conformista" da música "de massa" de músicos definidos como "bregas", por exemplo. Os críticos não lhe devotavam atenção e não a consideravam digna de nota ou sequer capazes de problematizar as questões nacionais, mas é sabido que vendiam centenas de vezes mais do que os artistas da "linha de frente do debate cultural" nacional. Assim, em toda a história da música popular brasileira no século XX, a produção que tendia a (ou pretendia) "complexificar as imagens produzidas por nossa ideologia nacional" sempre conviveu com outra, mais ampla e difundida, que reiterava essa ideologia. Essa complexificação sempre foi marginal: o Caetano que faz sucesso não é o de Cinema Transcedental, mas o de Você não me ensinou a te esquecer; Gal Costa é, para a maioria das pessoas, a intérprete de Chuva de Prata e não a de Objeto sim, objeto não. Sucesso não é parâmetro de qualidade, é certo, mas se é para falar de regressão musical, que se compare o sertanejo universitário com o sertanejo mexicanizado dos anos 70, por exemplo. E que se faça o favor de lembrar que os próprios autores que Safatle elogia já declararam apoio ao funk (Caetano cantando "Um tapinha não dói", por exemplo).

Um problema brasileiro?

Safatle baseia sua análise da música brasileira no circuito musical estritamente brasileiro, mas desde o advento do disco a nossa música dialoga com a produção internacional: as companhias de disco sempre foram majoritariamente estrangeiras, em número de companhias, porte, produção fonográfica, vendas e... elenco: os grandes nomes da MPB eram ligados à Phillips, Roberto Carlos gravou seus melhores discos nos EUA. No que isso depõe contra esses artistas? Nada, em princípio. Mas para falar da indústria cultural brasileira é preciso lembrar que esse diálogo sempre existiu: Chiclete com Banana, Boogie Woogie na Favela, Jovem Guarda, Mutantes...
Lembrar desse diálogo é fundamental para ampliar nossa perspectiva: o problema do esgotamento da canção e dos músicos como figuras de frente dos debates sociais de seu tempo é exclusivamente nosso? É uma hipótese a examinar, mas parece plausível que os americanos se ressintam igualmente da falta de novos Dylans, Morrisons ou Hendrixes, ou os britânicos considerem que a música do Reino Unido não parece capaz de produzir novos Beatles ou Stones. Se há uma regressão, é possível que esteja acontecendo em diversas partes do mundo, e promovida pelos mesmos agentes da ideologia do livre mercado, da indústria cultural e da homogeneização da sociedade do espetáculo. Mas repito: é possível. Pouco sabemos da música oriental além de Psy, e mesmo a nossa esquerda dialoga muito pouco com a nova canção latinoamericana, árabe (os levantes da Turquia e Tunísia produziram algumas das mais fortes canções de protesto da atualidade). Talvez o problema não seja mundial, mas certamente não é exclusivo nosso, e nem pode ser analisado como um processo exclusivamente endógeno.

A produção atual

O que torna mais complexa a análise da produção musical na atualidade é que, diferente da época áurea da indústria fonográfica, ela não pode ser detectada apenas no circuito disco-rádio-TV. A internet modificou profundamente a produção musical brasileira, e pelo menos de duas maneiras (possivelmente há outras): os artistas "independentes" alcançam mais diretamente seu público com a disponibilização, muitas vezes gratuita, de suas obras em sites pessoais, rádios online, etc.; houve uma segmentação mais clara desses públicos, a partir dos recursos de "seguir" um ou outro artista, das indicações e recomendações de amigos e conhecidos via redes sociais, mídias e publicações especializadas, etc. Mesmo não sendo ainda hegemônica, essa produção tem volume e público comparáveis aos das épocas que Safatle elogia, apenas não se valem dos mesmos meios de divulgação para alcançar seu público. Neste sentido, Safatle evidencia menos a pobreza da produção atual do que sua própria limitação em identificar, acessar e reconhecer essa nova produção. Mas é preciso buscar esses artistas: seus trabalhos estão aí facilmente encontráveis, mas sua opção pela produção e distribuição independentes da grande mídia e da indústria fonográfica dificultará sua aparição em veículos onde ainda impera a lógica do jabá.
Talvez Safatle tenha razão e legitimidade de cobrar alguma qualidade crítica maior dos artistas da MPB mais difundida. De fato, há uma parcela considerável de artistas que nem se enquadram nas "experiências musicais inovadoras" nem sejam da produção massiva dos funks, sertanejos e afins, cuja música não pode ser caracterizada pela simplicidade formal, mas que nem de longe chega a trazer algum "problema para o dominante": na verdade, essa é a própria trilha sonora do dominante. Que a parcela dominante tenha, em dado momento, acolhido a própria crítica e oposição à dominação, é um problema que deixo para Roberto Schwarz. Mas a música que tem relevância nesse sentido reivindicado por Safatle existe sim, e não é tão marginal quanto ele imagina. É inacreditável, por exemplo, que o articulista não seja capaz de reconhecer o valor cultural do rap, que está muito longe de ser uma simples "experiência musical inovadora" relativamente marginal: é, ao contrário, uma das mais importantes vertentes da música brasileira exatamente a partir dos anos 90. Não é que não haja, portanto: é Safatle que não vê. Também nos anos 90, juntamente com o axé emergiu o "mangue beat", que reposicionou completamente a herança antropofágica e tropicalista, e não pode ser caracterizada como simplesmente marginal à música brasileira em geral, exceto à custa de uma operação injustificável de esquecimento.
No início do século XXI, apenas para citar São Paulo, uma riquíssima cena cultural se formou em torno de certas redes bastante segmentadas mas muito bem articuladas: além da cena do rap/hip hop, o samba em suas diversas "comunidades" (como o Samba da Vela, da Laje, o Berço do Samba de São Mateus, etc), e que foram ricamente investigados no documentário "Samba à Paulista" (aqui um trecho); na rede de artistas que se autointitulou "Clube da Encruza" (Metá Metá, Passo Torto e numerosos parceiros). E mesmo que se tome a produção "mainstream", há que se olhar com maior atenção a esse universo da "inserção social", como nos "funk ostentação" que, muito mais do que uma expressão "conformada e conformista", desafia e testa constantemente os limites dessa inserção, desnudando o caráter ainda classista (sim), racial e de gênero dessa inserção. Os Racionais MCs entenderam: seu último e impactante disco tematiza exatamente essa inserção pelo consumo e dialoga com o universo do funk ostentação de forma direta, tensa, mas a partir de dentro.
Não há motivos para duvidar de que haja outras expressões igualmente ricas em outras regiões do Brasil, e que não se tratem apenas da pobreza formal e de conteúdo que Safatle critica. Mas é preciso buscar mesmo, elas não virão de mão beijada.
O incômodo de Safatle com a música atual talvez não deva ser entendido como uma crise da própria produção musical, como ele quer fazer crer, e sim uma crise social que resulta no profundo distanciamento de uma parcela da população (e da qual ele mesmo, querendo ou não, faz parte) em relação ao restante do "povo". Não é que não se problematize mais: ele não encontra quem o faça. Não é que a produção cultural mais crítica tenha sido posta à margem: ele é que foi. Não é que o espaço para a discussão séria das questões da sociedade tenha desaparecido: quem o faz é que procura outros circuitos para fazê-la. E não é porque alguém não os vê que deixaram de existir: quem não vê que procure melhor. Nada mais sintomático do quanto essa nova produção "incomoda o dominador" do que as tentativas de desqualificar a produção atual. Lixo cultural existe, mas também havia em outros momentos. Mas quem quer entender a sociedade e suas tensões deve olhar também para ela e não só para o que lhe agrada. Isso não tem nada de "esquema tosco da luta de classes", nem de "aplicar esquemas sociológicos primários", pelo contrário: significa levar adiante os esforços de algumas gerações de "historiadores sociais" que viram também na cultura as tensões sociais e a luta de classes - sim, a luta de classes: a "cultura de classe" que inspirou os trabalhos de Williams, de E. P. Thompson, de Eric Hobsbawm e tantos historiadores brasileiros que se inspiraram nesses trabalhos e que refinaram a discussão social/sociológica para muito além do que Safatle parece conhecer (ou disposto a reconhecer). O que falta ao filósofo, então, é seguir sua própria recomendação: ouvir de fato o que se produz. E se for para "nos perguntarmos por que chegamos a esse ponto", isso significa nos perguntarmos o que aconteceu nessa última geração para que a produção realmente relevante da música brasileira tenha decidido não depender mais da chancela dos "formadores de opinião" e articulistas de jornal.
"Something is happening and you don't know what it is". Do you, Mr. Safatle?

14 de setembro de 2015

Sapiosexual, qual o problema?

Por essas ondas que às vezes batem nas redes sociais, esta semana eu me deparei com algumas postagens discutindo o conceito de "sapiosexual" - resumidamente, a atração sexual que se baseia na "inteligência" de uma pessoa. Dois casos me chamaram muita atenção: em um, a afirmação de que "sapiosexual é um conceito válido para homens brancos"; em outro, um texto que procura questionar a ideia de que "inteligência é um afrodisíaco". Como não sou pesquisador do assunto, não me vejo em condição de contestar qualquer um dos estudos que são citados nesses textos. Mas ao ler os dois, veio-me a sensação de que a contestação mira um alvo e acerta outro.

Em primeiro lugar, não tenho nenhum compromisso, portanto nenhum interesse, em defender a ideia de sapiosexualidade em si. Por mim, esse poderia passar como nada mais do que só mais um rótulo para tratar um aspecto muito particular da sexualidade. Nem seria necessário, portanto, ter um nome. A "atração pela inteligência" seria só mais uma faceta possível da atração sexual. Não me lembro de ter visto em lugar nenhum a afirmação de que é uma faceta "essencial" da atração, ou que seja dominante, ou até que seja superior ou inferior a qualquer outra forma. Mas então, qual a razão de se tentar desacreditar esse rótulo com tanta contundência?

Em outro lugar, vi que esse é um conceito razoavelmente aceito entre psicólogos e antropólogos: neste texto, aparece uma definição simples de que a inteligência é uma entre outros possíveis fatores de atração:
Por exemplo, algumas pessoas se sentem atraídas pelo físico, pelo dinheiro, ou pela diversão que a outra pessoa pode lhe proporcionar. Mas, longe de um corpo perfeito, uma posição econômica invejável, ou uma vida social desejável, há pessoas que são atraídas pela inteligência. Quem sente atração por essa qualidade no sexo oposto, é um “sapiosexual”.
Não vi nesse trecho nenhum juízo de valor ou "um jeito meio tonto de se sentir especial", como o "Lugar de Mulher" afirma. E fica claro que esse conceito leva em conta aspectos culturais, sociais, históricos, etc. Esses aspectos devem ser considerados em qualquer um dos estudos mencionados. Confiando nas informações apresentadas pela Mari, devo aceitar que o estudo da FGV conclua que "quanto maior o nível de instrução, maior a probabilidade de estar solteira". Ela mesma levanta duas questões fundamentais: uma, de que o estudo é um meio de empoderamento, que faz da solteirice uma opção; outra, que inteligência pode ou não estar associado a instrução. Neste último caso, mesmo que associássemos o "sapio" não a inteligência mas a "intelectualidade", ainda haveria o caso de pessoas cuja formação e desenvolvimento intelectual não passa pela formação acadêmica, e sim por envolvimento direto com as artes, por exemplo. Mas não creio que seja o ponto central aqui.

O segundo estudo citado é mais revelador da posição defendida por Mari e Sueli Feliziani: conforme um estudo do IBGE, é muito mais fácil uma mulher com alta instrução estar solteira do que um homem com a mesma instrução, ou do que uma mulher menos instruída. Está claro aí - e eu concordo inteiramente com isso - que um traço estrutural da sociedade brasileira (o machismo) é evidenciado aqui. E o terceiro estudo citado mostra que a tendência não se restringe ao Brasil, mas à América Latina de forma geral: quando se casa, grande parte das mulheres latino-americanas mais escolarizadas tende a fazê-lo com homens menos educados.

Para piorar, o estudo citado por Sueli Feliziani, segundo o qual o aumento de escolaridade das mulheres negras é proporcional à "chance de ficar sozinha". Neste caso, ao machismo se soma outro elemento estrutural da sociedade brasileira, o racismo. Não tenho nenhuma razão nem autoridade para questionar essa conclusão. No entanto, todos esses estudos, na minha visão, colocam em xeque o racismo e o machismo da sociedade brasileira, e nisso acertam primorosamente, mas não necessariamente o conceito de sapiosexualidade.

Primeiro, porque quem fala dessa forma de atração já diz logo de cara que é mais frequente em mulheres. Assim, não se confirmaria a suposição de que a inteligência seria um fator determinante da atratividade de uma mulher, como Mari bem observou e ironizou em seu texto. Segundo, porque admitir que esta é uma forma de atratividade possível não significa afirmar que é fundamental, principal ou predominante.
Amy Farrah Fowler e Sheldon Cooper, personagens do seriado "The Big Bang Theory":
A mulher sapiosexual e o nerd branco assexuado?

Enfim, desacreditar a sapiosexualidade não contribui em nada para o combate ao machismo ou ao racismo, na minha opinião. Ainda que seja verdade que "sapiosexual" é um conceito válido para homens brancos (e espero que, por isso, ninguém ache que estou advogando em causa própria), essa constatação deveria ser o ponto de partida, não de chegada: por que é assim? Por que aos homens parece ser tão esdrúxula a ideia de se sentir atraído pela inteligência de uma mulher e não, por exemplo, por seus "atributos físicos"? Porque basicamente o machismo também determina que homens "sensíveis" são "afeminados" (e tantos outros sinônimos mais grosseiros); por que no modelo "machão" latinoamericano a sexualidade é sempre vinculada ao "instinto", ao carnal, às forças naturais e incontroláveis do animal, e não a um complexo que inclui também os fatores culturais, a formação, a história, os costumes, os valores, etc.

Eu estou inteiramente de acordo com a afirmação de que "ser mulher e pensar continua sendo um ato de resistência", mas sou obrigado a observar - da posição de homem branco - que pensar continua sendo um ato de resistência em geral. Não quero com isso minimizar a opressão machista e racista ao dizer isso. Não me imputem, por favor, a ideia de que faço aqui uma defesa das abominações cognitivas/éticas/políticas de quem fala de "vitimismo", "racismo invertido" e imbecilidades do tipo. Quero apenas dizer que, junto com o racismo e o machismo caminha também uma tendência de desqualificação do intelecto, especialmente no que diz respeito à sexualidade. Não há um dia que a mídia não reforce essa ideia: personagens fictícios nunca são atraentes por serem inteligentes: no máximo, são atraentes apesar de inteligentes, e no mais das vezes são apenas sujeitos esquisitos, excêntricos, perturbados e problemáticos. Sim, ainda mais se forem mulheres. Sim, AINDA MAIS se também forem negras.

Talvez a noção de sapiosexualidade coloque em questão apenas mais uma possibilidade ao já tão horrivelmente vasto repertório de opressões que nossa sociedade é capaz de engendrar. Longe de mim querer medir qual delas é melhor ou pior. Apenas quero admitir que seja sim possível que a inteligência seja mais um fator de atração, que se pare de achar que pessoas cultas ou intelectualizadas são necessariamente assexuadas ou "mal-resolvidas", que se supere a concepção de sexualidade como algo intrínseco apenas à dimensão dos sentidos, do corpo e das emoções primárias. Como em tudo o mais que envolve o humano, a sexualidade é natureza e cultura, biológica e social.

19 de fevereiro de 2015

O que você pode fazer contra a corrupção?

Recentemente, em vários âmbitos, tem havido uma crescente manifestação de descontentamento em relação a uma suposta corrupção generalizada no Brasil. Para ficar em dois exemplos: o mais óbvio, aquele que relaciona a corrupção aos "políticos" brasileiros; e, em outro caso mais prosaico, as insinuações que se lançam contra qualquer juiz de futebol que cometa erros capazes de favorecer um time qualquer.
Seria ingenuidade afirmar que não pode e não existem casos de corrupção, que não haja ninguém verdadeiramente corrupto. Mas o que esse post quer colocar em questão é a facilidade com que se generaliza uma percepção pontual para um quadro da situação como um todo, e o porquê de essa postura ser tão maléfica para a sociedade como um todo. A resposta para a pergunta que intitula esta postagem sai dessa discussão.
O ponto em comum entre os dois exemplos citados é que ambos levam à conclusão de que qualquer pessoa que alcance uma posição de poder será necessariamente corrupta - se não é, ainda virá a ser. Vai a perder de vista há quanto tempo se faz a associação político = corrupto (do meu conhecimento, isso já era recorrente nos programas de rádio dos anos 1940 - não há por que duvidar que não seja ainda mais antigo). E talvez tenha nascido junto com o futebol o xingamento "juiz ladrão". No entanto, tanto um exemplo como outro é originário de um tom crítico segundo o qual essas situações não deveriam ocorrer - daí a associação com a corrupção faz do político um personagem execrável, e do juiz que favorece deliberadamente um time de futebol alguém desviante do comportamento esperado.
Porém, esses são casos que devem ser sempre mantidos no concreto: casos específicos, pessoas com nomes, etc. Do contrário, o efeito crítico se perde, e se inverte: em vez de indignar, causa resignação. "É sempre assim", ou "sempre foi assim, e sempre vai ser". A generalização dessa percepção de que toda pessoa com poder é corrompida leva as pessoas a duas atitudes: (1) desistir de fiscalizar, acompanhar e cobrar posturas adequadas; (2) supor de antemão que qualquer acusação é verdadeira, porque a culpa é presumida pelo simples fato de se estar acusando um político ou juiz de futebol ("se está lá, não é à toa"). Tanto uma atitude como outra pode resultar no desestímulo a quem deseja fazer diferente, e - o que é ainda pior - torna essas áreas particularmente atraentes para quem não deseja mais do que continuar a fazer do velho e mau jeito.
Pressupor que um político é necessariamente corrupto ou um juiz necessariamente favorece qualquer time não contribui para diminuir essas corrupções, pelo contrário: diminui o empenho em fiscalizar, faz qualquer denúncia concreta se diluir no oceano da "corrupção generalizada". E isso não significa achar que só há casos pontuais e que não se trate de uma corrupção sistêmica, pois mesmo um sistema é sempre formado de elementos concretos e de relações específicas, que precisam ser desvendadas para que se compreenda qual é, como funciona, e quanto alcança o "sistema". Mesmo que seja para concluir que o "sistema" é muito extenso, perpassa a sociedade de forma muito ampla.
A perda de foco, em resumo, não apenas retira a eficácia de um combate real à corrupção, mas a alimenta. Então, o primeiro passo para enfrentar o "mal" é recusar a totalização preguiçosa, desmobilizadora e resignante. Depois se manter atento, fiscalizar (cada um sabe que área mais lhe interessa acompanhar), denunciar, combater ativamente. E tentar fazer a diferença em sua própria atuação. Não que isso resolverá sozinho o problema da corrupção brasileira, mas ajudará a lhe dar uma dimensão mais real.

22 de janeiro de 2015

Oposição e crítica

Nos últimos dias eu tenho recebido ou visto algumas postagens no Facebook que mostram as iniciativas recentes do governo federal (personalizados diretamente na figura da presidente, Dilma, ou do partido, o PT - como se o governo não fosse uma composição de forças, grupos, partidos, etc... mas ok, vamos em frente). Basicamente, o teor é algo como "bem-feito! Quem mandou eleger a Dilma?". Querem que eu responda "como posso apoiar esse governo que faz esse tipo de coisa". Vou tentar responder... mas, como de praxe, sou obrigado a dizer que a resposta não é simples, então que o leitor tenha paciência e boa vontade de ler até o fim.
A primeira coisa a dizer é: desde o primeiro momento em que declarei meu voto em Dilma, eu disse que "voto não é cheque em branco", e que estaria atento e vigilante, e criticaria o que achasse que é digno de crítica. Onde está escrito que o apoio deve sempre ser incondicional e irrestrito? Eu não assinei compromisso nenhum. Então, não tenho vergonha nenhuma - e não acho que seja hipocrisia nenhuma - dizer que sou crítico, e muito, de algumas das ações anunciadas recentemente. Por exemplo, a nomeação de Kassab e Kátia Abreu para o ministério para mim ainda é duro de engolir. Das medidas econômicas eu posso falar menos, mas recebi com estranhamento sim algumas das medidas anunciadas. E não é de hoje - na verdade, desde o primeiro governo Lula - que eu tenho críticas à política ambiental, e ao discurso que atribui ao licenciamento ambiental ou às comunidades tradicionais um suposto "entrave" aos megaprojetos (a começar pelas hidrelétricas na Amazônia). Eu esperava muito mais de um governo (ou de um partido) que nasceu das lutas populares.
Com isso, quero dizer que estou decepcionado com o governo petista, e com Dilma em particular? Sim e não. Ou: sim, em parte. Nesses pontos que indiquei eu digo que sim, sem medo. Poderia ainda apontar outros aspectos: o programa habitacional (coisa que é da minha área) tem méritos, mas também merece críticas; o subsídio à indústria automobilística, a proteção aos bancos e grandes grupos econômicos, o apoio à criminalização de certos movimentos sociais, etc (calma, vou falar da corrupção mais à frente). Eu posso dizer que tenho sim minhas insatisfações, mas apenas porque sei o que eu defendi ao votar nesse governo. E porque sei o que não queria a maioria dos candidatos oposicionistas. Posso dizer que critico aspectos do atual governo naquilo em que ele não corresponde ao que eu apoiei.
Mas o que me incomoda muito nessas postagens que citei é que a crítica que fazem não é a mesma que eu faço. Porque basicamente criticam Dilma por aquilo em que ela mais se parece com sua oposição. Bem, eu posso fazer essa crítica, porque não apoiei essa política. Mas qual o sentido de que ela seja criticada por aqueles que defenderam desde o início tudo aquilo que ela vem fazendo? Como podem aqueles que apoiaram exatamente esse projeto estarem agora exigindo de mim alguma "coerência" e querendo que eu defenda o que sempre critiquei, apenas porque o partido é outro? É apenas uma armadilha retórica: não importa o que eu diga (critique ou defenda), serei acusado de ser "hipócrita" (ô palavrinha mais banalizada...). Ou porque "defendo" um governo no que ele tem de menos afinado com o que eu apoiei nas eleições, ou porque critico algo que, supostamente, estou condenado a defender irrestritamente só por causa de um voto.
Para que fique bem claro: estamos falando da alta dos impostos, da primazia à política financeira (política econômica é um tanto mais que isso...), da revisão de benefícios sociais. Nada que um bom governo tucano não fizesse (vemos isso aqui em São Paulo). Mas eles propunham ainda mais: flexibilização da CLT, desvalorização do salário mínimo ("muito alto", segundo o eventual ministro da economia), redução dos investimentos em programas sociais (e não estamos falando de contingenciamento de verbas). Não fui e não sou a favor de nada disso. E continuo contra o discurso da oposição no que diz respeito à estigmatização dos beneficiários de programas como o Bolsa Família ("esmola", "Bolsa-vagabundo"...), ou de uma parcela enorme do eleitorado ("nordestinos são analfabetos, por isso votam no PT"), contra redução da maioridade penal e o discurso de ódio (pena de morte, "tá com pena, leva pra casa"), entre outros exemplos da maravilhosa campanha "moral" e "ética" da oposição nas últimas eleições.
No fim das contas, eu sei porque defendo o governo federal e sei porque o critico. Não estou certo, porém, que os opositores tenham essa clareza. Talvez achem que um governo tucano fosse ser um conto de fadas, ou seria o contrário desse - contrário em quê? Na política econômica, que é o que mais aproxima os dois partidos? Será que acreditam que o PSDB governaria sem o apoio do PMDB? A mim, parece que é a oposição pela oposição: se é do PT, só pode ser ruim. E se é ruim, tem que envolver o PT. Se reconhecer algo de positivo, automaticamente tem que aceitar tudo. E se criticar, tem que criticar tudo também. Porque, afinal, sabemos bem que a realidade é binária: positivo ou negativo, bom e mau, mocinho e bandido... Não. Eu não penso assim, e não vou me deixar empurrar para esse reducionismo.
Ah, sim, a corrupção. Algumas pessoas acham que defender o governo federal é ser favorável a, ou conivente com, ou até integrante de, esquemas de corrupção. É evidente que eu não sou. Mas não acho que tenha muito mais a acrescentar: os esquemas estão sendo denunciados e investigados (coisa que nem sempre são), julgados (o que poucas vezes foi) e até condenados (quando haviam sido, antes?). Eu apenas quero, a respeito disso, que todos os envolvidos sejam de fato envolvidos, não importa a coloração partidária, os interesses que representam ou a instância administrativa a que pertencem. E quero que os julgamentos sejam justos, imparciais, dentro da lei. Eu não vou "defender bandido", mas também não vou entrar nessa de que vale tudo para punir a torto e a direito (punição não é vingança).
Acho que é isso. Agora podemos discutir política, e parar de brincar de torcida uniformizada dos partidos, certo? Um abraço a você que leu até aqui.

15 de outubro de 2014

Visão de mundo, é isso que verdadeiramente está em debate

(Atendendo ao pedido de alguns amigos, publico aqui uma declaração dada no Facebook sobre a minha escolha nesta eleição.)
Eu já deixei bem claro meu posicionamento político, e garanto que tenho toneladas de argumentos para defendê-lo. Mas sinto que os apoiadores do candidato de oposição não querem argumentos, mas apenas recusar, renegar e desqualificar a visão de mundo e o projeto de sociedade que eu defendo. Vou tentar sintetizar o que eu penso em tópicos. E acreditem, por trás de cada frase tem anos de reflexão e experiência. Para quem quiser argumentar, as portas estão abertas. Quem quiser continuar gritando ódio, poupe meu tempo.
  1. A escolha é: inclusão social x manutenção (ou aumento) da desigualdade
  2. Isso implica aumentar a renda dos e a proteção aos mais pobres, mesmo que para isso for preciso ir na contramão das "regras de mercado"
  3. Eu quero o fortalecimento da diplomacia sul-sul, e não a volta da subserviência às potências hegemônicas (cada vez mais em crise)
  4. Corrupção? Eu acredito no controle social, na transparência e na investigação e julgamento como as melhores respostas contra a corrupção. O problema é social, político. Não de moral individual.
  5. Sou contra toda forma de justiçamento, da pena de morte, das chacinas e da violência policial contra quem quer que seja ("bandido" só existe depois de provado, julgado e condenado. Antes disso, no máximo, suspeito).
  6. Sou a favor da ampliação dos direitos civis, e não de sua restrição. Pobres, analfabetos, homossexuais, etc, têm direitos pelo simples fato de existirem, e suas escolhas não nos cabe julgar.
  7. Sou a favor dos serviços públicos, de sua manutenção e até ampliação. Mais funcionários públicos significa equipes técnicas mais estruturadas, melhor atendimento, maior alcance das políticas públicas. Pode-se (deve-se) cobrar eficiência, mas a redução do Estado numa nação do porte do Brasil significa mais problemas do que soluções.
  8. Não acredito em "salvadores da pátria". Meu voto não é um cheque em branco. Sei em quem votei e voto, e acompanho diariamente o que os meus escolhidos estão fazendo. Sei cobrar deles os compromissos que assumiram, e vou denunciar tudo o que não for cumprido, e tudo aquilo de que discordo.
  9. Defendo uma democracia efetiva: ampliação de direitos, direito de manifestação e direito a oposição. Quero poder protestar sem medo de repressão policial, porque isso é meu direito.
  10. Não quero, em hipótese alguma, a volta do regime militar.
  11. Não, o Brasil não está se tornando, e não vai se tornar, nenhuma "ditadura" comunista. E o simples fato de haver quem afirme isso livremente é a melhor prova disso.
  12. Eu contesto quem tem opiniões contrárias à minha sim. Quero que argumentem. Isso não é censura. Isso é responsabilidade pelo que se diz.
  13. Acredito sim que a maior parte dos eleitores do Aécio pode até não ser homofóbico, racista, reacionário, elitista ou fascista. Mas, sinto dizer, quem apoia a candidatura peessedebista terá todos esses ao seu lado. Eu prefiro me manter afastado de tudo isso.

28 de agosto de 2014

Annuntians

  1. Em outros momentos da nossa História, a luta social era travada fundamentalmente entre os opostos do marxismo clássico (capital x trabalho, ou burguesia x proletariado). A reivindicação de direitos era travada nos "mundos do trabalho": o direito à greve, às licenças remuneradas (férias, fins de semana, licença-maternidade e paternidade, etc), a remuneração justa, a jornada de trabalho, etc. Foi no contexto das lutas trabalhistas que a democracia brasileira foi resgatada, há pouco mais de trinta anos.
  2. Desde então, as lutas trabalhistas não desapareceram, mas cederam espaço a numerosas outras lutas: as questões raciais, de gênero, ambientalismo, multiculturalismo, para citar apenas alguns. Um contexto que, para muitos, descreve nossa "pós-modernidade": essa pluralidade de demandas tornam mais complicada a "velha" luta contra o capital, inclusive porque os movimentos às vezes se chocam: há sexismo entre militantes antirracismo, há causas "culturais" que se chocam com a "natureza" (não digo que sempre, algumas vezes isso acontece). E então diversos movimentos sociais emergiram com novas bandeiras, novas propostas, novas experiências sociais que não encontravam expressão no Estado e nas políticas públicas.
  3. Uma série dessas experiências ganhou espaço no primeiro governo Lula: com Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente, com Gilberto Gil no da Cultura, com as pastas dedicadas aos Direitos Humanos, à Mulher e à Igualdade Racial, na criação do Ministério das Cidades. Esse processo liberou energias por muito tempo represadas, e deflagrou-se um movimento, ainda inacabado, de ampliação da participação da população na discussão de políticas públicas e nas reivindicações de direitos. Muito mais do que alguns pessimistas (aos quais não me alinho) querem ver, optando pela leitura de que a inclusão social - via Bolsa Família, aumento do salário mínimo e do emprego - produziu apenas mais consumo.
  4. Lamentavelmente, esse processo foi parcialmente abortado em 2005. O chamado "mensalão" pôs na defensiva o projeto petista, que desde então foi sistematicamente desqualificado, confrontado e estigmatizado com pechas como a da corrupção, do "projeto de poder", sem falar de outras ideias mais delirantes, como o "golpe comunista" ou o "bolivarianismo". A tentativa de desestabilizar até cair aquele governo foi parcialmente fracassada, mas cobrou caro: desde então, a armadilha da "governabilidade" obrigou Lula e depois Dilma a acordos estarrecedores com os setores mais retrógrados da política nacional (especuladores, extremistas religiosos, latifundiários, etc.). O petismo não foi derrotado de fato, mas foi amordaçado e limitado, encurralado pela chantagem da "base aliada" (que, de fato, não tem compromisso algum com as bandeiras históricas do PT).
  5. Enquanto isso, nas várias arenas de lutas sociais, duelos eram travados em torno da orientação que tomariam certas bandeiras - como exemplo, o que significa, de fato, "sustentabilidade"? Nos meandros de demandas sociais legítimas, tem sido engendrado um conjunto de propostas "novas" - um capitalismo supostamente humanizado, colaborativo, respeitoso e sustentável... mas, essencialmente, o capitalismo. Enquanto isso, no topo da pirâmide social, o conservadorismo se expandindo, a oposição a qualquer projeto emancipatório ganhando força, a financeirização encampando definitivamente um projeto de exclusão/elitização e autoritarismo.
  6. Então, irrompe o junho de 2013, uma explosão de demandas sociais que pegam as classes dominantes (política e econômica) no contrapé, deixando-as atônitas e sem resposta. Imediatamente, inicia-se a corrida para se apropriar e conduzir uma força irrefreada, desarticulada e heterogênea. Discursos diversos iniciaram uma disputa por "traduzir" (conduzir) esses movimentos que demandavam desde as causas mais concretas (como o transporte) às mais niilistas ("contra a política"), passando pelas reivindicações de mais direitos sociais e pelas críticas aos vícios da política partidária e da democracia representativa.
  7. É este o quadro que se forma nas eleições que se aproximam. Dos candidatos com maiores chances de vitória, temos uma representante do governo atual, com seu projeto de "emancipação controlada", limitado e amesquinhado pela realpolitik; um representante do conservadorismo antipetista empedernido; e uma candidata que se afirma representar o "novo" e a negação de "tudo o que aí está" (qualquer semelhança com o palavreado do candidato Collor de Mello em 1989 não é mera coincidência), mas que efetivamente parece representar um grupo que se apoderou de algumas das bandeiras sociais contemporâneas e as oferece devidamente domesticadas na forma do "capitalismo supostamente humanizado, colaborativo, respeitoso e sustentável".
  8. Nesse quadro, eu não posso deixar de assumir um posicionamento. Recuso terminantemente o regresso, o projeto conservador/reacionário; recuso também o discurso "antipolítico", sedutor e vazio (ou, na verdade, cheio de intenções impublicáveis). Eu vi como a desilusão com a "Nova República" e o governo Sarney desembocou numa crítica generalizada aos "políticos" que resultou em Collor, nos Anões do Congresso, etc. Não apoio a corrupção, mas tampouco a vejo restrita ao setor público federal: a corrupção grassa nas relações promíscuas entre o governo estadual de São Paulo e empresas cartelizadas nos transportes, saneamento, mídia; a sonegação fiscal de grandes grupos de mídia não me ofende menos do que desvios de verbas públicas (essencialmente, é o mesmo por outros meios). A resposta messiânica é mais fácil de digerir e vender, ainda mais para as cabeças desavisadas ou preguiçosas. Eu não compro esse projeto. Com todos os defeitos e vícios, quero continuar seguindo adiante, reservando-me o direito de criticar o que considero ruim e pernicioso do governo atual (como a perigosíssima permissividade em relação à escalada de violência estatal contra a população e os movimentos sociais), mas ainda acreditando que a democracia só amadurece na prática, no contato e no atrito. Sem soluções mágicas, sem regressões autoritárias. Meu voto (mas não minha consciência) é de Dilma Rousseff.

13 de julho de 2014

Futebol e música em tempo de crises

A campanha da seleção brasileira nesta Copa do Mundo trouxe à baila uma série de comentários sobre uma "crise" do futebol brasileiro, chamamentos à sua reforma (ou revolução, conforme prefiram alguns), necessidade de se "reinventar" ou se "redescobrir". A sensação geral que perpassa todos esses comentários é a de que algo se perdeu e precisa ser resgatado. Um traço da "personalidade" brasileira, de sua identidade. Para uns, o erro esteve em abandonar o futebol que era o "típico" futebol brasileiro: o toque, o drible, a ginga e o... improviso. Outros, na direção contrária, apontam como erro a recusa do futebol brasileiro em se "modernizar", segundo os parâmetros do futebol... quem adivinha?... europeu (é claro). A esses últimos não posso deixar de lembrar que foi justamente o clamor pela "modernização" (após quatro copas de "fracassos" entre 1970 e 1986, quando tivemos excelentes times mas não conseguimos "ganhar a Copa") que nos levou à famigerada "era Dunga" de Sebastião Lazzaroni... É toda uma geração de atletas, treinadores, cartolas e jornalistas que vem dizendo, há décadas, que o futebol brasileiro precisa se profissionalizar, modernizar. Que o jogador precisa, antes de tudo, de condicionamento físico e tático, etc etc etc.
Curiosamente, a mesma sensação de perda ou descaracterização tem rondado muito do que se fala sobre a nossa música. Assim como no futebol, onde lamentamos a ausência de Pelés, Garrinchas, Zicos ou quetais, também suspiramos ante a ausência atual de Jobins, Chicos, Caetanos... A impressão de "decadência" ou (para usar um termo ainda mais forte) "degeneração" da nossa música é provada pela preponderância dos pagodes mela-cueca, do "sertanejo universitário" ou o que quer que seja. Aqui também a discussão se dá em torno da questão da "identidade nacional": estaríamos abandonando nossas "raízes" em favor de uma sonoridade "globalizada", ou a realidade é que a modernização é um processo irrefreável?
A única resposta que me ocorre, num caso como no outro, é a que tenho dado repetidamente nos últimos tempos: não generalizemos. Para entender o que ocorre com o futebol e com a música no Brasil, é preciso ser capaz, primeiramente, de circunscrever a questão, para depois olhar para o lado de fora. Estamos falando de um futebol e de uma música que se tornaram imensas e poderosas atividades econômicas. São parte de uma indústria de entretenimento ou de esportes altamente profissionalizados, globalizados (e, quando digo isso, estou dizendo também que integram um circuito altamente financeirizado, especulativo e competitivo segundo os ditames neoliberais que regem essa tal "globalização"). São atividades em que o fim não é o esporte ou a arte em si, mas o lucro que geram. Mas, nem de longe, essa música e esse futebol correspondem à totalidade do que se faz no Brasil.
Que se diga então que as atividades econômicas baseadas na cultura ou no esporte brasileiros precisariam se reformular e transformar. Perguntemos: para quê, e para quem? Ganhamos duas Copas do Mundo desde Lazzaroni até hoje (ou seja, em plena globalização), e temos jogadores frequentemente listados entre os mais valiosos do mundo, ou entre os maiores jogadores do mundo (talvez, circunstancialmente, estejamos numa fase de vacas magras... mas já passamos por isso antes). Do mesmo jeito, artistas brasileiros têm participado ativamente de circuitos internacionalizados da música. O negócio vai bem, sim, obrigado. Quem lucra com ele continua lucrando.
Algo me diz, porém, que o futebol e a música que gostaríamos mesmo de reconhecer como nossa está longe das "arenas" ou dos programas de televisão. Posso dizer pela música, que conheço um pouco melhor: exatamente agora, há uma geração absolutamente fantástica de compositores, intérpretes, instrumentistas, que não devem nada às gerações anteriores em termos de inventividade, exploração, domínio dos repertórios tradicionais e capacidade de reelaboração dessa mesma tradição. Que talvez esperem apenas o momento de sua "descoberta", se é que esperam. Na verdade, para muitos deles, isso não faz diferença: integrar o circuito da "indústria musical" é visto muitas vezes como limitante - ainda que, talvez, muitos desejassem poder viver de sua arte.
No futebol, onde parece se generalizar a ideia de que tudo não passa de um grande negócio (com as constantes suspeitas de manipulação e ingerências de toda espécie), nada me impede de imaginar que exista ainda, em outros campos, talvez nas ruas, e longe das "escolinhas de futebol", da visão dos "olheiros" e do alcance dos "empresários". Um futebol que, como a música, é primeiramente praticado pelo prazer de jogar. Ali talvez encontremos ainda os nossos talentos, o improviso, o jogo coletivo, o toque de bola. Ali também poderemos encontrar quem pouco se importe com a "profissionalização" e não faça nenhuma questão de ser um novo astro. Embora, também, talvez haja quem desejasse poder viver do que sabe fazer de melhor.
Não é preciso medir o sucesso da nossa música ou do nosso futebol pelo título na Copa do Mundo ou pelo vencedor de "Ídolos". E, principalmente, não é preciso medir nosso valor como "povo" ou "nação" usando réguas que não são nossas. Não há porque duvidar que voltemos a ser campeões do mundo, não há porque achar que nunca mais teremos outros Chicos e Tons. Mas estaremos simplesmente errando o foco se quisermos orientar nossas artes maiores para a obtenção de "resultados", segundo uma lógica estritamente empresarial. Vamos brincar de novo.