29 de março de 2006

Mais aforismos

  • São os alunos a razão de ser de uma escola - esteja onde estiver o problema, não é neles.
  • Pós-produtivismo: incorporar o "meio ambiente" não como "externalidade", mas como aspecto intrínseco da atividade humana. Para os capitalistas, significa "responsabilidade"; para alguns marxistas, "eco-socialismo". Para a maioria das pessoas, é só um palavrório complicado demais.
  • E como o capitalismo pode incorporar as "externalidades" ambientais e sociais e continuar sendo capitalismo?
  • João Rubinato, vulgo Adoniran Barbosa. Esse sim era urbanista.

Creative commons

Site amplia discussão sobre liberação de direito autoral

[Aqui está uma das iniciativas mais fascinantes de que tive notícia ultimamente. Merece ser acompanhada com toda atenção, pois é uma completa inovação no que se trata de democratização do acesso à cultura. Ou, em outros termos, uma alternativa promissora de reverter a fetichização da produção artística]

LUIZ FERNANDO VIANNA
da Folha de S.Paulo, no Rio

06/03/2006 - 09h39


Com a entrada hoje no ar do site Overmundo (www.overmundo.com.br), projeto encabeçado pelo antropólogo Hermano Vianna, o advogado Ronaldo Lemos dará mais um passo na sua batalha para mudar a economia da cultura no Brasil e no mundo.

Parece uma tarefa pesada demais para um mineiro de Araguari de 28 anos, mas ele já está na luta há algum tempo. Fez mestrado em Harvard (EUA) sobre o tema, doutorado na USP, é o único latino-americano entre os nove integrantes da cúpula do Creative Commons --o conjunto de licenças que permite a um artista liberar parte de seus direitos autorais--, está iniciando uma pesquisa internacional chamada Open Business e é um dos responsáveis pelo Overmundo, que professa os ideais de mudança.

"Estamos à beira de uma grande transformação, uma explosão. E a hora é a agora. Há uma janela de oportunidade que vai ser fechada a qualquer momento", empolga-se e angustia-se Lemos.

Segundo ele, o fechamento será feito pelos grandes conglomerados de entretenimento, que têm pesquisado formas de bloquear os códigos de produtos (CDs, DVDs) para impedir o repasse de músicas, filmes etc. É o que as empresas chamam de combate à pirataria, e Lemos contesta.

"Esse discurso da pirataria precisa ser combatido, porque tem uma carga emocional forte, mas obscurece o debate. Um moleque baixando música em casa, uma pessoa vendendo CD na esquina... Existem diversas razões sociais. Esse discurso é produzido pelo departamento de comércio norte-americano e não tem números confiáveis", diz Lemos.

É em busca de números que ele está partindo com a Open Business, pesquisa que será feita em vários países durante um ano. No Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas, no Rio, Lemos coordenará o levantamento no Brasil, em dois países latino-americanos (Chile e México, provavelmente) e no país para onde embarca no dia 12 cheio de curiosidade: a Nigéria.

"Os EUA produzem 600 filmes por ano. A Índia, 800. A Nigéria, 1.200. Quantas salas de cinema há no país? Nenhuma. É direto para o mercado doméstico. Os filmes são vendidos em VCD, por camelôs, a US$ 3 cada um. É uma economia que emprega mais de 8.000 pessoas e, segundo eles, já movimenta US$ 3 bilhões por ano. Dos modelos alternativos e bem-sucedidos a Hollywood, o nigeriano é o único exportável", acredita Lemos, que fará no Brasil um seminário sobre o "cinema-povo" (expressão sua) nigeriano em maio.

No Brasil, o foco será o tecnobrega. É um fenômeno que movimenta milhões de reais, sem que os CDs cheguem às lojas.

"Nas festas de Belém do Pará, os CDs são gravados em tempo real e vendidos na saída. O cara topa pagar R$ 5 porque se sente parte do evento. O Pixies [banda americana] fez isso, e foi um alarde. Mal sabiam que o tecnobrega já fazia isso há anos", diz Lemos.

Ele acredita que a pesquisa provará como é possível ganhar dinheiro através de um "modelo aberto". O reggae no Maranhão, o funk no Rio e o forró em todo o país também estão criando, segundo Lemos, indústrias e mercados alternativos, com CDs e DVDs de boa qualidade.

"As periferias estão se apropriando da tecnologia para criar modelos próprios de negócio. E isso está se tornando gigante. Para os países em desenvolvimento, o modelo "open business" é o único viável", acredita ele, ressaltando que os países ricos têm combatido fortemente essas experiências para não perder sua hegemonia.

Já existem 53 milhões de licenças Creative Commons em 50 países. Ainda não há um ranking, mas o Brasil estaria em terceiro ou quarto lugar. Gil e novos artistas como Mombojó e BNegão são alguns exemplos dos que aderiram. É possível escolher se o artista libera o uso da obra para fins comerciais e se ela pode ser alterada.

"O Creative Commons diz para o artista: assim como você tem direito a dizer não a todos os usos de sua obra, você tem direito de dizer sim para alguns. Quem usa já percebeu que não se perde dinheiro. Ao contrário", afirma Lemos, que será o anfitrião do encontro da cúpula do Creative Commons no Brasil, em junho.

28 de março de 2006

Indignações circunstanciais

[Andei sumido por algumas semanas, e aproveito a volta para, em vez de só postar textos e notícias interessantes, dar algumas opiniões sobre coisas que estão acontecendo por aí. O primeiro texto é sobre os recentes "escândalos políticos"... Sem a pretensão de ser um ensaio de ciência política, apenas uma provocação sobre em que a nossa gritaria pode atrapalhar mais do que ajudar.]

"O maior esquema de corrupção da história", dizem os jornais, revistas pouco confiáveis - daquelas que trazem no nome um chamamento à observação - e congressistas mal capazes de conter o riso diante da calamidade em que o PT parece ter-se afundado de pouco mais de um ano pra cá.
É preciso ler esse tipo de manifestação com o maior cuidado e uma série de restrições. Primeiro, porque não há de fato nada de novo, a não ser que do partido que se trata se esperasse algo muito distinto. Mas é evidente que a rapidez com que políticos de partidos adversários se apressam em desqualificar o PT tem muito mais a ver com o interesse em tirar a esquerda de cena do que qualquer compromisso sério com a "honestidade" e a "probidade" no trato com a "coisa pública".
Puxar um pouco pela memória não faz mal a ninguém: os partidos que mais comemoram a derrocada deste governo são os mesmos que estiveram, quando governo, envolvidos em escândalos tão ou mais graves do que todos os que vêm sendo noticiados. Com a diferença de que, em certos casos, a opinião pública certamente não contou com uma imprensa tão "combativa" quanto agora.
Ou seja: neste jogo, não há inocentes, não há isentos. Mas se está constatdo que também o PT se deixou "contaminar" pelas práticas corruptas tão brasilianas, ainda assim é extremamente prejudicial se ater a constatações que enfatizem apenas o momento atual, sem problematizá-lo historicamente. A corrupção grassa, mas esta talvez seja a marca distintiva de todo o período da "Nova República" (1985 até hoje) - ou talvez de todo o período republicano (há muitos textos do início do século XX denunciando a "podridão" da política brasileira...), ou quem sabe ainda de antes...
A cada novo episódio, como a dança da deputada, o caseiro, ou o que seja, pipocam manifestações de indignação com a classe política, e sempre se faz crer que chegamos ao fundo do poço. Sai governo, entra governo, e o poço parece inesgotável. Então, a ênfase no imediato, no circunstancial, parece ter como único objetivo desviar a atenção do que deveria ser a questão principal: não a corrupção deste ou daquele governo, mas o sistema político brasileiro, ou a relação Estado-sociedade.
Charges, piadas, programas de televisão, declarações de artistas indignados, depoimentos da população, tudo é aproveitado para se criar uma indignação moderada, mediada, inconseqüente. Que, em lugar de criar revolta e mobilizar a tentativa de mudanças, apenas provoca uma apatia niilista e conformada - "é tudo igual mesmo"...
Assim, todo mundo pode se sentir confortável em xingar o governo, como já xingou todos os anteriores, votar em um candidato que se oponha a "tudo o que aí está" (nunca é demais lembrar, Collor foi eleito como antítese do governo Sarney, tido na época como afundado em um "mar de lama" comparável a tudo o que se vê hoje) e se decepcionar novamente. Aí começa o novo ciclo, passando de uma indignação circunstancial para outra, e continua a situação sem que nada altere a disposição das pessoas para uma ação efetiva de transformação dessa realidade.

3 de março de 2006

Mas e essa gente a�, hein?: As Escalas do Despotismo

http://www.ces.uc.pt/opiniao/bss/151.php

As Escalas do Despotismo

Peço toda atenção a este texto. Diz muito do momento que atravessamos, da realidade que estamos vivendo. E nos chama a pensar na responsabilidade de cada um de nós em relação a tudo isso. Podemos escolher fingir que não é conosco, deixando a coisa correr solta, ou alimentar mais ainda o "sistema", aceitando seus valores, ou a opção, que declaro a minha e espero ser a de todos nós: resistir, recusar, enfrentar.

Boa leitura!

Um grupo de jovens menores maltratou sadicamente, apedrejou e espancou até à morte o transexual brasileiro Gisberto, um sem abrigo de 45 anos. Aconteceu no Porto. Há poucos anos, o líder indígena Guadino Pataxó tinha ido a Brasília participar numa marcha a favor da reforma agrária. A noite estava amena e decidiu dormir no banco da paragem de autocarro. De madrugada, um grupo de jovens acercou-se dele enquanto dormia, regou-o com gasolina e queimou-o vivo. Na polícia, confessaram que o fizeram para se divertirem e pediram desculpas por não saber que ele era um líder indígena; pensavam que ele era "um qualquer sem abrigo". Que há de comum entre estes dois casos de violência gratuita e as caricaturas dinamarquesas? A mesma incapacidade de reconhecer o outro como igual, a mesma degradação do outro ao ponto de o transformar num objecto sobre o qual se pode exercer a liberdade e o gozo sem limites, a mesma conversão do outro num inimigo perturbador mas frágil que se pode abater com economia das regras da civilidade, sejam elas as que governam a paz ou as que governam a guerra.

As sociedades modernas assentam no contraste social, a idéia de uma ordem social assente na limitação voluntária da liberdade para tornar possível a vida em paz entre iguais. As idéias de cidadania e de direitos humanos são a expressão deste compromisso. As tensões entre o princípio da liberdade e o princípio da igualdade e as contradições entre eles e as práticas sociais que os desmentem constituem o cerne da política moderna. Como o grupo social dos reconhecidos como iguais era inicialmente muito restrito (os burgueses
do sexo masculino), a grande maioria da população (mulheres, trabalhadores, escravos, povos colonizados) estava fora do contrato social e, portanto, sujeita ao despotismo dos que tinham poder sobre ela. As lutas sociais dos últimos duzentos anos têm sido lutas por inclusão no contrato social. Com o tempo, as lutas pela igualdade socio-económica, protagonizadas pelos trabalhadores, foram complementadas pelas lutas pelo reconhecimento das diferenças, por parte das mulheres, das minorias étnicas e religiosas, dos homossexuais, etc.
Este movimento ascendente de inclusão e de civilidade está hoje bloqueado por via de uma combinação perversa entre capitalismo neoliberal e suas conseqüências (exclusão social, migrações) e a teologia política conservadora hoje dominante nas três religiões abraâmicas (cristianismo, judaísmo e islamismo). Paulatinamente, a solidariedade politicamente organizada é substituída pelo individualismo, e a filantropia e a celebração da diversidade, pela intolerância: em vez de cidadãos, consumidores e pobres; em vez de justiça social, a salvação; em vez do ecumenismo, o dogmatismo; em vez da hospitalidade, a xenofobia; em vez de conflitos institucionalizados, a violência do crime e da guerra.

O despotismo pré-moderno está, assim, a ser reinventado na sociedade e nos indivíduos, tanto nas macro-relações entre países ou religiões, como nas micro-relações na família, na empresa ou na rua. Os poderosos e os despossuídos são degradados por igual, ainda que com conseqüências muito diferentes. Os despossuídos recorrem à violência ilegal, tanto contra os poderosos como contra os ainda mais despossuídos. Os poderosos recorrem à violência que legalizam pela invocação de princípios que, sem surpresa, estão sempre do seu lado. São Tomás de Aquino diria deles o que disse dos cristãos do seu tempo. Que padecem do habitus principiorum:o hábito de invocarem obsessivamente os princípios para se poderem dispensar da sua observância na prática.

Boaventura de Sousa Santos
Publicado na Visão em 2 de Março de 2006
http://www.ces.uc.pt/opiniao/bss/151.php