Cada vez que um novo crime envolvendo um menor de idade comove o país, ressurge o debate sobre a redução da maioridade penal. Trata-se de uma reação imediata (portanto intempestiva), apressada (portanto imatura), passional (portanto irrefletida), que teve como reação uma série de artigos e posts em outros blogs buscando mostrar que não há uma relação real entre o problema apontado - a criminalidade praticada por menores de idade - e a solução proposta - a possibilidade de esses menores serem condenados à prisão comum. Numa série de charges, o cartunista Angeli ironiza a redução da maioridade penal adotando um procedimento muito simples: levando a ideia ao limite. Como li em algum comentário por aí, o que aconteceria se a redução estabelecesse o limite de idade para 16 anos (em vez dos atuais 18) e um crime parecido fosse cometido por um adolescente de 15 e 11 meses? Reduziríamos novamente para abarcar mais este "delinquente"? De redução em redução, chegaríamos então ao seguinte:
Acho que há duas questões centrais na defesa da redução da maioridade penal que devem ser discutidas: uma é a ideia de que a maioridade de 18 anos "protege" ou "encobre" os crimes praticados por pessoas menores do que a idade limite. A segunda é a ideia de que é possível reduzir a idade porque menores de 18 já têm "consciência de seus atos", ou seja, "sabem o que estão fazendo".
Vou aqui me concentrar na discussão do primeiro ponto, e para isso reporto-me ao trabalho da professora Teresa Pires Caldeira, em seu livro Cidade de Muros. Resumindo muito o seu argumento, o que temos é que a ausência de direitos efetivos para toda a população resulta na ideia de que direitos são um "privilégio". Historicamente, as classes dominantes monopolizaram esses direitos e "privilégios". Os direitos humanos não eram estigmatizados quando se tratava de lutar pela redemocratização e fim das prisões políticas de integrantes da classe média. A associação de "direitos humanos" com "defesa dos bandidos" ganhou corpo quando as lutas pelos defensores dos direitos humanos passaram a reivindicar a universalização de direitos (civis, políticos e outros). A denúncia de que os crimes tidos como "exceções" do regime militar eram, na verdade, práticas corriqueiras de opressão da população mais pobre ampliou o universo daqueles a que se pretendia conceder direitos. A reação a essas lutas partiu de antigos defensores do regime militar (como Afanásio Jazadji - precursor e modelo dos ratinhos e datenas atuais) que, com acesso à mídia, propararam um discurso de que esses direitos resultariam em aumento da insegurança porque garantiriam a proteção de "bandidos". Num momento de crise econômica (a grave recessão do início dos anos 80) com enorme aumento do desemprego e da insegurança estrutural de trabalhadores, inclusive de classe média, boa parte da população acabou absorvendo a ideia de que os defensores dos direitos humanos pareciam se importar mais com os "bandidos" do que com os "trabalhadores de bem" que, naquele momento (e de forma constante nos anos 80 e 90), viam seus próprios direitos serem precarizados e subvertidos por uma ordem econômica perversa. Uma retórica do ressentimento justificou, então, o argumento de que os "bandidos" eram "protegidos" por pessoas que não "se importavam" com as pessoas "honestas", como se os "privilégios" da classe dominante tivessem sido concedidos à população pobre à custa da exclusão das classes médias. Como resposta, em lugar de apoiar a ampliação generalizada dos direitos, uma parcela dessa classe média passou a defender a manutenção dos direitos apenas para privilegiados (incluindo-se entre eles, é claro) e a oposição a qualquer ampliação de direitos da população mais pobre.
Nos anos seguintes, o Brasil passou por um período de violenta concentração de renda (resultado da "hiperinflação" dos anos 80 e das práticas neoliberais implementadas durante a década seguinte), que se traduziu na restrição ainda maior das oportunidades de melhoria de vida da população pobre. Em paralelo, a ideologia individualista do neolliberalismo legitimava a noção de que o progresso é o resultado do "mérito" individual (esforço, trabalho, dedicação e outras qualidades pessoais), sem levar em conta condições sociais mais amplas, como as diferenças na rede de oportunidades à disposição dos diferentes grupos sociais, o capital social de cada grupo, entre outras. Mas uma vez, a luta por melhorias das condições sociais e de democratização dos serviços públicos e estruturas sociais (uma ampliação das oportunidades de ascensão social) foi entendida por aquela parcela mais conservadora da classe média e das elites como uma extensão de "privilégios", portanto uma injustiça para com os trabalhadores médios, para quem restava apenas o esforço individual. O ressentimento recrudesceu.
A velhíssima equivalência entre "pobres" e "criminosos" obscureceu a visão de que a ampliação dos direitos coletivos visava a uma redução de desigualdades estruturais e historicamente persistentes da sociedade brasileira. Para isso colaboraram as imagens das favelas, as notícias sobre o tráfico, a amplificação de notícias que retratavam a violência de jovens e pobres contra trabalhadores e "pessoas de bem" inocentes. Misturando e equivalendo todas essas mensagens, criou-se uma "cultura do medo" que tinha como resposta o enclausuramento e a formação de enclaves fortificados e protegidos (convenientemente disponibilizados pelos empreendedores privados, desde condomínios fechados até segurança privada), a reivindicação de maior "controle" e "punição" dos crimes e o maior disciplinamento da população pobre.
Resta discutir a outra questão por trás da reivindicação de redução da maioridade penal: os menores de idade "sabem" ou não o que estão fazendo? Fica para o próximo post.
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