28 de março de 2013

Militares x torturadores

Numa série de reportagens muito interessantes e importantes, a Rede Brasil Atual vem mostrando relatos de militares que se opuseram à ditadura instaurada em 1964 (confira aqui), e o preço que pagaram por isso. Torturas, perseguição, destituição, ostracismo... Não, nem todos os militares foram favoráveis ao regime, nem todos foram torturados (alguns, como vemos, foram também torturados), e nem todos se alinhavam ao pensamento retrógrado que acabou por prevalecer.
Ao que parece, as dissidências foram purgadas da corporação, e não sei dizer até que ponto a discordância tem espaço entre os militares ainda hoje. Basta lembrar que, todo ano, o Clube Militar continua celebrando a "Revolução de 31 de março", e continua destilando o seu ódio contra as esquerdas, os programas reformistas (e nem estamos falando de "revolução"), os movimentos sociais, e toda tentativa de democratização ampla da sociedade.
Esse anacronismo só faz mal ao país, começando pela própria corporação: que legitimidade tem para a população essas forças armadas que continuam combatendo "comunistas" ou "terroristas" em pleno regime democrático?
O pior é pensar nas resiliências: muitos dos oficiais que implantaram a ditadura em 1964 eram originários da ditadura anterior (o Estado Novo), as técnicas de tortura e de "inteligência" (espionagem) que foram desenvolvidas e aplicadas nesse período se mantiveram na democracia (dita "populista") que se seguiu, e foi só retomada e reforçada no regime militar que se seguiu. Qual a chance de vermos isso acontecer de novo, uma vez que ex-apoiadores da ditadura militar continuam aí, ativos e cada vez mais explícitos na defesa do Estado de exceção?
E, enfim, os verdadeiros inimigos da democracia precisam ser identificados com mais clareza. Apontar apenas para os militares é redutor, simplista e - o que é mais perigoso - ilusório.

11 de março de 2013

Violência no trânsito: muito mais do que um problema de embriaguez

A recente notícia de um atropelamento de ciclista na avenida Paulista, que resultou na amputação do braço da vítima tem gerado uma onda de protestos e de manifestações acaloradas. Quis aproveitar o "evento" para discutir uma questão que tem sido tratada mais com paixão do que com razão.
Há uma campanha sistemática em defesa da noção de "tolerância zero" com relação ao consumo de álcool e direção. Não quero aqui fazer defesa dos "bêbados", mas tornar a discussão um pouco mais complexa. Dizem algumas estatísticas que uma porcentagem grande dos acidentes de trânsito envolvem motoristas embriagados. Internacionalmente, vários exemplos de campanhas contra a direção em situação de embriaguez parecem ter resultado em grandes reduções no número de acidentes, o que justificaria então um enrijecimento do controle e da punição aos motoristas que demonstrem estar muito alcoolizados para dirigir. Podemos facilmente concordar com esse argumento, mas isso encerra o problema? Na minha opinião, não.
Eu entendo que o problema é mais complexo, e envolvem variáveis "externas", como é a ingestão de bebida alcoólica, e "internas", como o que Luana Soncini denominou "uma cultura de desprezo - em variados graus - pela vida de pessoas que não sejam seus pares".
Se ficássemos apenas nas causas "externas", já teríamos uma lista de substâncias que, assim como o álcool, alteram e prejudicam a percepção e os reflexos: por exemplo, os cada vez mais comuns (infelizmente) remédios psiquiátricos (antidepressivos ou ansiolíticos), anti-histamínicos, por exemplo. Drogas perfeitamente legais, que também limitariam o uso do automóvel e que não são controladas neste aspecto. Sim, o consumo de bebida alcoólica é mais generalizado, mas há um problema de estatística a resolver: dos casos de acidentes não relacionados a bebidas alcoólicas, quantos seriam relacionados a outras substâncias? Das relacionadas, idem.
Poderíamos incluir ainda como causa "externa" os transtornos da população paulistana atual? Uma pesquisa recente mostra que 3 a cada 10 paulistanos sofrem algum tipo de transtorno mental (ansiedade, depressão ou outras). Muito frequentemente se atribui ao trânsito uma das causas desses problemas, mas cabe perguntar também quanto desses transtornos não repercutem também no nosso "caos" diário? E o que dizer da estafa por excesso de trabalho (ou de preocupação com ele)? Quantos profissionais hoje em dia circulam diariamente entre visitas, reuniões, prestação de serviços, etc? Cansaço e ansiedade, sabe-se, podem facilmente aumentar a distração, a dispersão, a desatenção.
Por fim, cabe ainda perguntar em que medida não se pode relacionar a violência dos acidentes ao fato de que temos carros cada vez mais velozes, com maior capacidade de aceleração, etc. Ou seja: cada vez mais, os carros exigem um piloto no limite de seus reflexos. Qualquer déficit mínimo na atenção ou na capacidade de reação é suficiente para provocar um acidente fatal, por exemplo.
Somente esses poucos exemplos deveriam bastar para mostrar que o problema dos acidentes e violência no trânsito deveriam ser avaliados de uma forma muito mais requintada e complexa. E nem cheguei a tratar das causas "internas", para mim as realmente decisivas (um motorista desrespeitoso, violento ou imprudente não precisa estar - e muitas vezes não está - embriagado para causar acidentes). Mas essa avaliação mais sutil levaria, necessariamente, a repensar a sociedade atual de uma forma que, provavelmente, a maioria não estaria disposta a fazer. Especialmente aqueles que se beneficiam do estado de coisas atual ou que, por alguma razão, não querem se dar ao trabalho de uma reflexão mais "radical".

7 de março de 2013

Politicamente incorreto, moralmente correto?

Parece contraditório, mas não é: a virulência de certas opiniões manifestas em defesa de uma suposta "liberdade de expressão" é paralela a um impulso igualmente forte de estigmatizar e condenar qualquer tipo de "conduta desviante" ou moralmente "condenável".
De um lado, são tratados com impaciência ou hostilidade aqueles que se levantam contra diversas formas de opressão cotidiana, como o racismo ou o sexismo. São acusados de "intolerância", ou de "autoritarismo", de quererem calar quem pensa diferente deles. Mais apropriadamente, são pressionados a deixar que manifestações racistas, machistas ou homofóbicas sejam veiculadas sem nenhum tipo de responsabilização, sem sofrerem críticas ou desmentidos.
De outro lado, a defesa de direitos humanos ("pra bandidos", como muitos se apressam em acusar), ou de manifestações políticas em espaço público, da reivindicação coletiva por direitos sociais, são rapidamente rotuladas como coisa de quem "não tem o que fazer". Se falamos então de comportamentos que fogem aos padrões normativos dominantes ("normal", neste caso, deve ser remetido a sua origem etimológica: o que segue a norma. Não tem nada a ver com "natural", por exemplo), a condenação é imediata. Usuários de drogas, criminosos, praticantes de formas alternativas de sexualidade, ateus, socialistas, são simplesmente indignos de qualquer consideração, solidariedade, respeito. Devem ser rápida e, se necessário, violentamente enquadrados e endireitados.
O que há em comum é o forte desejo de manutenção, de conservação. As regras devem ser mantidas a qualquer custo. Os costumes arraigados são confortáveis, seguros... portanto, necessários. Há que defendê-los de todas as formas possíveis. Pensar alternativas é custoso, doloroso e ameaçador.