18 de fevereiro de 2013

A cidade que não dorme vs a cidade que precisa dormir


Há algum tempo, e de forma cada vez mais intensa, tem-se conflagrado um conflito em São Paulo, entre as atividades noturnas, especialmente festas, bares e “baladas”, e o descanso dos moradores de áreas residenciais. O que este conflito revela é essencialmente a necessidade de se aprimorar a regulamentação das atividades noturnas, principalmente aquelas potencialmente geradoras de ruídos. Digo aprimorar porque, na minha opinião, não se trata de estabelecer controles mais rígidos, punições mais severas ou intensificar a vigilância, mas realmente buscar soluções que compatibilizem as duas coisas.
No fundo, trata-se de um conflito entre duas imagens muito fortes da cidade de São Paulo, duas ideologias que talvez já tenham estado mais harmonizadas em outros momentos. O conflito mostra como que a quebra de um acordo, a ruptura de um pacto que antes permitia que a “cidade do trabalho” fosse também a “cidade que não dorme”. É hora de se pensar então em um rearranjo, e para isso a questão precisa ser encarada sem maniqueísmo, sem tentar apontar quem está certo e errado na polêmica.

A cidade que não dorme
A vida noturna, a gastronomia, parte importante do circuito cultural, são alguns exemplos de atividades que se desenvolvem em São Paulo durante o período noturnos. Além desses, diversas atividades de apoio ou suprimento das atividades diurnas ocorrem também à noite: abastecimento de estoques, manutenção predial ou de infraestrutura urbana, de redes eletrônicas, etc, requerem essa diminuição da atividade que caracteriza o “horário comercial”. Até mesmo os serviços “24 horas” têm-se tornado cada vez mais frequentes e úteis. São talvez menos numerosas do que as atividades diurnas, mas nem por isso menos importantes no contexto da economia atual – a chamada “economia digital”, ou a “sociedade da informação” e a globalização, em que se costuma considerar a necessidade de conexão em tempo real ininterrupto (a noite daqui é o dia do outro lado do mundo).
Essas atividades econômicas assumem ainda maior importância em uma cidade que cada vez mais deixa de ser uma metrópole industrial para uma de serviços. Está claro então que o problema não é que essas atividades existam e aconteçam, mas o quanto elas atrapalham quem vive a rotina do trabalho diurno e acessa apenas ocasionalmente essa rede noturna.
Essa vida noturna tem também um outro papel na cidade, e esse é menos reconhecido: o de segurança. Onde há pessoas, a sensação é de que há a quem recorrer em caso de necessidade, de que é possível transitar sem medo, há certa intimidação daqueles que poderiam se aproveitar do escuro e do vazio para os delitos. Não é que esta seja a solução para a segurança pública, mas a contribuição do simples burburinho das ruas tem sido notado já há muito tempo – pelo menos desde que Jane Jacobs publicou seu livro Morte e vida de grandes cidades.

A cidade que precisa dormir
Mesmo quando passou a denominar “a cidade que não para”, ou como diz a música, a “cidade que não sabe adormecer”, São Paulo associou esse dinamismo ao trabalho, não ao lazer. Não era e não é a cidade boêmia, mas aquela em que o trabalho não cessa. Numa cidade que fez do trabalho o cerne de sua identidade, parece impensável que atividades tidas como meramente de lazer ou diversão adquiram precedência – mesmo quando, como dito antes, essas atividades também sejam trabalhos e tenham sua importância econômica. Neste aspecto, parece que o que se questiona não é senão o fato de que elas ocorram muito próximas a áreas residenciais em que, em sua maioria, as pessoas fazem uso do horário noturno para descanso. Os ruídos noturnos passam a ser uma interferência inapropriada e um transtorno. Particularmente em relação aos bares e estabelecimentos que comercializam bebidas, alega-se que contribuem para a violência, os acidentes automobilísticos, o tráfico de drogas. Este argumento é relativamente verídico, mas também é verdade que nele reside tanto uma preocupação pública quanto um julgamento moral (ou moralista) dessas atividades noturnas.
O problema, portanto, não é outro senão o contato num mesmo espaço entre essas duas apropriações da cidade. A “cidade que precisa dormir”, até agora tem vencido a querela: a maioria dos bares fecha à 1 da manhã, música ao vivo ou em alto volume só podem se estender além das 22h mediante a garantia de não emitir além de um nível de decibéis relativamente baixo. Por outro lado, o crescimento do número de reclamações pelo barulho mostra que também a vida noturna “invade” as áreas de repouso.
Na realidade, é difícil afirmar quem invade o quê. O que dita a expansão da ocupação residencial tem sido, tradicionalmente em São Paulo, muito mais o interesse do mercado imobiliário do que uma concepção coerente dessa ocupação. Os moradores são os menos responsáveis por isso – no máximo, constituindo uma “demanda” com que o ramo imobiliário justifica todo e qualquer novo empreendimento – mas os que acabam sofrendo diretamente o efeito de uma ocupação desorganizada (não exatamente desordenada, como se costuma chamar: a ordem estabelecida só não é a do planejamento urbano, e sim do lucro imobiliário).
Se a vida noturna se aproxima cada vez mais das áreas residenciais, também é porque estas se aproximam dos polos geradores de ruído, e que estão ligados diretamente aos pontos de maior acessibilidade – vias de tráfego principais nos bairros, proximidades de terminais ou estações de metrô, etc. A irritação com o barulho é causada também pela circulação muito próxima de veículos, mas estes não têm como ser responsabilizados pelo distúrbio ao descanso, o que não ocorre com estabelecimentos comerciais.

A questão do ruído
Sem pretender tratar de um assunto em que não sou especialista, quero observar que o ruído, como tem sido tratado pela legislação e pela vigilância, virou uma questão apenas do emissor, quando também o receptor deve ser levado em consideração.
Para facilitar o entendimento, vou dar um exemplo de outro tipo de poluição, a do ar: além do controle da poluição emitida, monitora-se também a qualidade do ar que recebe essa emissão. Onde a qualidade está mais prejudicada, teoricamente deve-se dificultar a instalação de novos emissores, mesmo que estes atendam aos níveis recomendados.
No caso dos ruídos, não temos nenhuma ideia do nível de ruído ambiente, e isso obriga a um enrijecimento do controle sobre a fonte. Porém, o incômodo causado por uma fonte sonora é proporcional à proximidade desta em relação a quem vai ouvir o ruído. Há técnicas para medir a “curva de decaimento” do som conforme se afasta dele, e é isso que tem permitido que a questão do ruído seja tratado tecnicamente em avaliações de impacto ambiental, por exemplo.
Assim, a adequação do ruído emitido ao entorno, no período noturno principalmente (mas, pensando bem, não só) deveria considerar essa distância do local às áreas residenciais, onde predomina o descanso noturno. E as atividades geradoras de ruído noturno (ou seja: locais com tráfego intenso, causadores de aglomerações humanas ou que tenham música ao vivo ou em alto volume) teriam que condicionar a emissão de ruído ao exterior à proximidade de áreas residenciais.

Superando o impasse
Uma forma de resolver o conflito sem que a “cidade que não dorme” tenha que submeter a “cidade que precisa dormir” (ou o inverso) poderia ser a aplicação dos instrumentos clássicos de planejamento urbano a esta questão – por exemplo, um “zoneamento acústico” da cidade:
  1. Inventário de fontes de ruído: as atividades potencialmente causadoras de barulho noturno seriam identificadas e classificadas, estabelecendo um “ranking”. As atividades seriam responsabilizadas também pelo ruído causado indiretamente, por eventuais aglomerações no seu entorno, quando relacionadas à própria atividade (por exemplo: casas de espetáculo seriam também responsáveis pelo barulho causado do lado de fora com estacionamento, filas, etc.)
  2. Diagnóstico: caracterização das condições de conforto acústico diurno e noturno de toda a cidade, identificando áreas ruidosas e áreas silentes.
  3. As “áreas ruidosas”, ou seja, as que já apresentam níveis mais elevados de ruído ambiental difuso, teriam dificultada a instalação de empreendimentos imobiliários residenciais. Inversamente, seria possibilitada a instalação de estabelecimentos mais ruidosos, contanto que a contribuição ao ruído ambiente fosse tal que os níveis totais não ultrapassassem o permitido por legislação ou referenciais técnicos adequados.
  4. As “áreas silentes”, ou com baixo ruído ambiental, seriam privilegiadas para a implantação de residências, e nelas os estabelecimentos noturnos deveriam obedecer a padrões mais estritos de emissão de ruído.
  5. Correlação emissão – recepção: as áreas residenciais seriam mapeadas para se criar “curvas de decaimento” a partir das quais seria possível indicar os níveis aceitáveis de ruído emitido pelos estabelecimentos, fazendo com que os mais ruidosos tenham que se afastar mais das áreas residenciais, ou realizar maiores adequações para isolamento acústico ou soluções afins.
Enfim, isto é apenas um esboço. Mas mostra que é possível que em São Paulo convivam as duas faces da cidade – a que não dorme e a que precisa dormir.

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